domingo, 27 de dezembro de 2009

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Mas mulher gosta


Na esplanada está sentado um casal, passa um moço, ela acompanha-o com o olhar:
- Você, estás a olhar o quê?
- Hei, estou só a apreciar, tu não usas a apreciar também?
- Nada, mulher não pode. Logo que aprecia quer, basta ver na montra que logo vai comprar.
Nas mensagens dos palcos de teatro, nas letras das músicas, no papo nos cafés, a mensagem mais comum é de que a mulher aceita tudo, submete-se sempre, deve perdoar, deve calar.
As mulheres resignam-se. Não se resignam a ser inferiores, é engano dos homens, resignam-se a fingir que aceitam que são inferiores, que o homem é mais sabedor, mais esclarecido, mais poderoso, mais inteligente, digno de maior respeito. Que é ele quem controla as finanças, o que toma as decisões. Quem tem direito às amantes e aos amigos, às más disposições, aos caprichos, aos gritos e ao descontrole de uma ou outra chapada de vez em quando, aos desejos, às exigências. Ele é o boss. E elas as submissas, dedicadas aos trabalhos da casa – para conforto do homem, e às crianças - para o sangue da descendência.
Comentam comigo as amigas moçambicanas:
- Eu estava para sair e ele me viu com esses shorts… tive de ir mudar. – no meu rosto deve haver espanto por que ela continua – É verdade, contigo não é assim? Ah, é porque és white! Eu, namorado? Se chego para lhe buscar com o lips com menos brilho logo me pergunta: estavas aonde, que não vens de casa?
Comenta comigo o Alfeu
- Eu sou moçambicano, e ainda sou jovem, mas sou tradicional, por exemplo eu acho que, como fez o meu pai, os meus tios, e os meus avós antes deles, o homem deve ter pelo menos três mulheres.
E leio nos livros, nas análises antropológicas, no Corão… o homem pode, deve, tem a opção de ter mais do que uma mulher. Mas se não consegue tratar as várias mulheres de forma igual, em afectos e valores materiais, então deve manter apenas as que consegue tratar com justiça, três, duas ou apenas uma. E acrescentaria eu que se conceda aos homens com incapacidade de amar, de cuidar, de respeitar que tenham a quantidade correspondente - nenhuma!
No norte de África, sentada numa esplanada, está comigo um namorado e um casal muçulmano. Ele, o homem do casal, é guia turístico, fala línguas, conhece os hábitos do ocidente, fala descontraidamente, olha-me, dirige-me a palavra, brinca com o facto de o meu corpo ser na perspectiva dele pouco… africano.
Eu não viajo para julgar, viajo para sentir, para durante algum tempo experimentar os valores e as prioridades de uma cultura que não é aquela onde eu nasci. Consciente que o que me afasta destas pessoas é apenas isso, o contexto. Os valores de bom e mau, positivo e negativo não são universais, aliás, sabemos logo que nos afastamos o suficiente da nossa rua que nada é universal…
A esposa dele, muçulmana, de véu na cabeça, não conversa, olha para baixo e sorri timidamente. O homem conversa animadamente, a determinado momento passa um grupo de mulheres, Hamad olha o grupo, sorri por um momento e diz para o meu companheiro,
- Sabes, tenho de me casar outra vez. - eu não reajo logo, mas é apenas porque fui apanhada de surpresa, confesso que me preparo para abrir a boca e gritar a minha indignação e despejar todos os meus valores, ideias (algumas apriorísticas) e sentimentos reais sobre a atitude dele. Mas como disse não viajo para julgar e mais um segundo é o suficiente para pensar para mim “open your mind. Aqui, é normal”. Mantenho-me em silêncio, respeitosamente. Olho Rassul, a esposa, e os olhos dela continuam baixos, mas mais brilhantes agora, de lágrimas.
Estou com colegas numa festa, servem o almoço buffet e as mulheres da mesa levantam-se para servir os homens. Eu sorrio, apenas, e eles provocam:
- Joana, tu que já estás aqui há algum tempo, tens de começar a seguir as tradições… vem comida e ficas sentada? Não fica bem! Tens de nos servir! – bom, eu respeito as tradições e na minha curiosidade pelos usos e costumes consigo até conter-me, não comentar, respeitar em silêncio, mas se me provocam, aí sigo. E sigo! Em discurso sobre a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres. De imediato os homens na mesa quase se levantam e com ênfase replicam:
- Mas elas gostam de servir o marido!! Nem somos nós, elas é que gostam! – repito que o confronto não é minha intenção, mas já não resisto:
- Ai é? Gostam? Mas nesta mesa há três mulheres e foram os homens que se levantaram para dizer isso!! – elas sorriem e dizem baixinho
- Thanks Joana. – e a mim apetece gritar:
- DE NADA, MANAS!

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Em Moçambicano II


Sai de casa e Moçambicano não pergunta se está tudo bem, diz aqui tudo bem não sei do seu lado. Não responde tudo bem, diz tudo bem, nada mal.
Moçambicano não conduz – dirige. Não tem TIR – tem camião cavalo. Não usa t-shirt – usa camisete.
Não sai – baza. Não vai para – baza a. Não vai ao – vai no. Não agarra – pega. Não conhece cana-de-açucar – mas cana doce. Não usa saco de plástico – tem plástico. Não tem um amigo há muito tempo – se conhecem dos times. Não tem namorada nova – anda a agarrar agora. Não usa colete – usa pulôver. Não tem telemóvel – tem celular. Não vai ao multibanco – vai no ATM. Não faz poupança – tem estique. Não demora uma hora – demora uma hora de tempo.
Moçambicano não diz sim – diz ya. Não confirma – levanta o sobrolho. Não diz ainda não – diz ainda. Não pergunta se já está – pergunta “já?”
E para jantar a mãe não mói amendoim – vovó pila. E em casa não tem um irmão mais novo que é drogado – tem um puto ket. E o pai não está a ver televisão – assiste tv. E não fica zangado porque o filho fuma – o velho zanga que ele smoka. E o irmão mais novo não cria complicações – tá a confusionar. E amigo não liga a alterar planos e ele fica sem saber o que fazer – mano matrecou, malta fica desprogramado.
Moçambicano não está sem dinheiro – tásse mal. Não vai para a marginal com os amigos – vai apanhar brisa. E não vai à praia – vai refrescar. Não faz exercício – exercita. E não namora – apanha esquina. E quando faz amor não falha – desconsegue de apanhar tuza.
E no fim-de-semana não sai da cidade – no final de semana viaja. E à tarde não tem um compromisso com portugueses – tem um social com uns tugas. E lá não faz pouco do amigo branco – manga do white. E não mima a amiga – baba a siss. E ela não tem batom brilhante nos lábios – pôs lips. E eles não lhe dizem que lhe que fica bem – rendem.
E à noite não vai à festa – vai à batida. Não vai à casa de banho – vai no banheiro. E não se arranja – tchuna-se. E no caminho não vai em excesso de velocidade – spida. E nas curvas não vira – guina. E a discoteca não está má – disco ta off. E não pedem dinheiro para a entrada – para entrar precisa taco. E não vai curtir – vai tchilar. E não dança – faz seus passos. E não provoca, ameaça e se envolve numa briga – agita, tchuça e faita. E não se engana – tchacha. Não bebe gin – bebe djin. E não tem feitiço – tem wasso wasso. E não está a ir – está a vir. E a meio da noite não ta bêbado – ta jazz. E no final da noite não vomita – manda Gregório. E não foge – dá gás. E namorada não envia um “por favor liga-me” – dama faz pleasecallme. E ao telemóvel não diz que vem – fala no celular “hei-de vir!” E não fica acordado a noite toda – amanhece lá.
Dia seguinte moçambicano não está de ressaca – tá de babalazi. E não falta ao trabalho – gazeta. E não telefona a avisar que não se sente bem ou que morreu alguém na família – fala “tou incomodado” e “tive infelicidade”.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Em Moçambicano


São 6 da manhã e moçambicano não dorme – ferra. O despertador toca e ele não se levanta cedo – madruga. E não vai tomar duche – vai duchar. E não se arranja – grifa-se bem. Depois não toma pequeno-almoço – mata-bicha. E não bebe café solúvel e pão com doce – toma café batido e bread com jam. Não sai de casa para ir trabalhar – vai no serviço. E quando chega ao local de trabalho não pede desculpa por ter atrasado – diz sorry lá que tive problema de transporte. E não trabalha até ao meio dia – djoba até aquela hora das 12. E aí não pede ementa – pede menu. E não come – tacha. Não come batata frita – come chips. Não come salsichas – come vorse. Não come costeleta – come t-bone. E não bebe uma laurentina preta - toma uma escura. E não fala com o amigo sobre a namorada – bate papo “brada, minha dama”. E não gosta muito – grama maningue. E na saída do restaurante não vê as mulheres que passam – aprecia as dama. E não seduz – paquera. E não faz convite – pede contacto. E não a segue – vai a sua trás. E não encontra um conhecido mais velho – apanha um jon cota. Na rua não compra caju – compra castanha. E não tira fotografias – fota. No escritório a empregada não despeja o lixo – no ofice trabalhadora vai deitar. E não trás o jornal - leva. E não põe insecticida – baygona. E não tem reuniões – tem meetings. E no computador ele não escreve – taipa. E depois não faz impressão – printa. E não trabalha as fotografias em Photoshop – fotoshopa. E para fazer um intervalo não vê o patrão – tcheka o boisse. E não sai para dar uma volta – dá um djiko. E não escreve sms para a amiga colorida – manda mensagem para a pita. E não mente dizendo que está ocupado – mafia que tá bizi.
Moçambicano não trai – cornea. Não caminha – estila. Não se faz de difícil – jinga. Não acaba uma tarefa – ultima. E no fim do trabalho não vai – baza. E com os amigos não tem negócios – tem bizne com bro. E ao fim do dia não vai ao ginásio – djima. E não tem bicicleta – tem bikla. E não está musculoso – tá big. E não faz saudação batendo na mão do amigo – deketa. E não gosta de aproveitar a vida – enjoya laifa.De tarde não bebe chá e come pão com manteiga e queijos – toma chá. E não vai buscar a namorada que está num cabeleireiro distante, a arranjar as unhas e a fazer tranças no cabelo – vai apanhar dama que faz unha e entrança láaaaaaa no salão. E não bebem um refrigerante – tomam refresco. E a namorada não usa mini-saia e saltos altos e anda descapotável – põe sainha e uns saltos e tá descartável. E não lhe diz que é bonita – diz “tens boas

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Moluene não é pessoa?



São duas da manhã e eu estou a voltar para casa.
Na Av. Karl Marx, lá em baixo, alguns rapazes batem num homem que está deitado no chão. Eu abrando instintivamente o carro mas depois penso segunda vez, e sigo…
Sigo mecanicamente, no semáforo vermelho paro, quando muda o sinal avanço, observo à esquerda e à direita, carrego com o pé no acelerador, volto o volante, sigo para casa – o celular toca, eu atendo por automatismo mas nem sei o que me dizem do outro lado, respondo em “hum”, e “hã”, e “sim” e “não sei bem”, e “ok”… Desligo. Estaciono o carro e quando fecho a porta vejo no vidro o meu reflexo, a minha expressão, olho-me nos olhos. E tenho vergonha. Entro no prédio, saúdo o guarda, subo as escadas devagar… avanço pelo corredor, abro a grade, abro a porta, entro em casa, acendo uma vela, fico a olhar a chama viva. Tenho vergonha, desde quando sou assim, cobarde? A cena que vi incomoda-me, não penso em nada.
No dia seguinte passo para ir para o serviço, a rua está cheia de gente, há carros, tchovas e chapas, muitas pessoas atravessam a rua, juntam-se nas bancas de fruta, ao pé dos vendedores de roupa das calamidades…
E no chão… está o corpo do homem. Está lá. Deitado. No chão.
Os chapas desaparecem em fumos de tubo de escape, os tchovas carregados de bananas passam, as mamanas com os baldes de fruta passam, os vendedores de Giro, as crianças com os uniformes, dois homens de fato e gravata. Ele está lá, deitado no chão. Ninguém o olha. Ninguém vê?
Volto a ficar parada nesta imagem mas não faço nada, não sei o que fazer.
Regresso do serviço. Estou parada no semáforo na 25 de Setembro, deitado no chão, na faixa divisória, está o corpo de um rapaz, uma titia está mesmo ao lado dele, à espera que o sinal mude para verde, eu também espero. O corpo está ali, deitado, inanimado, talvez morto.
Do outro lado da estrada, mais à frente, outro corpo.
De novo sigo, de novo chocada comigo mesma, o que é que me permite que passe assim, que siga caminho?
Como nos permitimos seguir? Todos nós, em todos os lugares da cidade, do país, do mundo, como podemos pensar que não há nada que possamos fazer, que não adianta pedir ajuda ou tentar ajudar, que é problema que não temos de ser nós a resolver?? Como podemos?
É uma pessoa que está ali deitada. Uma pessoa. Ainda saberemos o que é?
Porque não faço nada? Será que penso que é diferente de mim porque a roupa que veste está mais suja, porque não cheira bem, porque não tomou o mesmo banho do que eu, porque não tem casa, porque está doente? Por isso é diferente?
E nestas características que pode ter, em qual delas é que deixa de ser pessoa? Quando é que deixa de sentir, de ter batidas de coração, medos, desejos, dores, sonos, sorrisos?
É uma pessoa. Ou não é?

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Da espera


São 4h20 da madrugada e eu estou fechada nas escadas de um prédio. Não tenho chave para voltar a entrar na casa que não me pertence, não tenho chave para abrir o portão da rua para sair para a liberdade (que me pertence). Não sabia… só agora quando cheguei lá abaixo vi o portão da rua fechado, o arame farpado por cima do muro, como podia eu adivinhar? Como podia adivinhar que a chave do portão, essa, fechei eu lá dentro da flat no momento em que bati a porta…
Que fazer? Lá dentro dormem dois homens. E a julgar pelos telefonemas que faço, pelos murros na porta que dou - de sono pesado. Mesmo muito pesado.
E agora, eu que leio os sinais, qual é a leitura deste?
A vida é uma coisa complicada.
Já se ouviu a chamada para a primeira oração do dia na mesquita mais próxima. Será esta a mensagem, será para mim o caminho do islão?
A cidade começa a acordar, e embora esteja numa avenida das mais movimentadas os pássaros são os primeiros a dar sinais do nascer do dia. Oiço um ou outro carro, alguns na velocidade própria da noite passada em claro, outros no passo lento da preguiça matinal.
Eu, sentada nas escadas, à porta desta casa que visito pela primeira vez, escrevo. Tenho mais 58minutos de bateria do computador e imagino que mais duas horas de espera…
Espero.
A espera é dos poucos momentos da vida quotidiana em que o privilégio de não ter nada para fazer acontece, mas em geral não temos a capacidade para usufruir dele assim, sem culpa, com prazer. Quantas vezes nos queixamos que nem temos tempo para respirar? Nos nossos dias sem pausa para tomar chá, nas semanas sem tempo para tchilar, nos meses sem Costa do Sol, Bilene ou Ponta do Ouro, nos anos sem viajar… quantas vezes desejamos apenas isto: estar sem fazer nada?
Eu, a privilegiada, espero.
Ai, como é que me meti nisto? Há dias em que o meu instinto fica assim, avariado, e nestes dias devia fazer apenas uma coisa, ficar em casa.
Inquietam-nos as esperas não é? E eu, que não tenho mais nada para fazer, penso sobre isso. Porquê?
Verifico que de cinco em cinco minutos olho para o relógio, às vezes menos. Tento distrair-me, esquecer o facto de estar presa aqui, mas dura pouco tempo, na maior parte do tempo o sentimento de contrariedade e insatisfação é o que prevalece. Contrariando todas as leis do carpe-diem, do valor do momento, da meditação e do abandono dos preconceitos da consciência e da entrega total à qualidade do sentir - penso em duas coisas, no antes: o que podia ter feito para não estar nesta situação; e no depois: o que faço para sair dela. Estratégias, tentativas, planos “quando sair daqui vou…”
Na rua começam a ouvir-se pessoas, conversas, vassouras. E lá dentro, porque não acordam eles? Amanhã vou estar impossível no djob, não vou dormir nada. Porque é que não acordei alguém antes de sair? O que é que eu estou aqui a fazer? Meto-me em cada uma! Ao menos aproveita o tempo, escreve – falo sozinha, os mosquitos incomodam-me, escrevo.
Começo a pensar na quantidade de líquidos que cada um de nós bebeu, nalgum momento terão vontade de ir ao banheiro, não? E penso nos compromissos, ambos falaram em acordar cedo mas o celular com o despertador está na sala, e com as minhas chamadas já tocou muitas vezes, e sem ninguém atender, acordar, sem um som ou um movimento de resposta. Continuo a telefonar mas o celular está na minha perna, já nem o levo ao ouvido. Deixo de ouvir o toque do telefone e oiço uma voz ensonada: estou?
Ei, atenderam!! Atenderam o telefone, estou free!

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Tás aonde?!


Em Maputo grande percentagem dos telefonemas entre homens e mulheres começa assim: “tás aonde?!”
E a pergunta é inquisitiva, pede informação tão básica, soa a tal impulso, fala tão acusatória, é tão veloz - que é desarmante e parece que temos mesmo de responder.
A frase é lançada como um tiro logo que atendemos o celular, e vem assim, de surpresa. Não sei bem porquê, mas penso que é com a esperança de nos apanhar desprevenidas e deixarmos cair alguma informação… comprometedora. Porque é que estes homens pensam que nós, as mulheres, temos informações desse tipo, eu não sei. Mas desconfio…
E para evitar confusionar na nossa resposta não pode haver hesitação, a informação tem de ser clara, e principalmente verdadeira! Porque não raras vezes a seguir vem a frase: “se eu estou aqui, nesse sítio! Tás AONDE?”. E neste momento mesmo aquelas de nós que estamos a dizer a verdade - resultado de termos sido apanhadas de surpresa ou não - ainda duvidamos, olhamos em redor, como que para confirmar que estamos naquele sítio. E paramos o que estamos a fazer, interrompemos o papo, refreamos o passo, largamos as compras, espreitamos à janela, vamos à porta, mudamos a pasta de mão e prendemos o celular, em desequilíbrio, entre o ombro e o ouvido. Rodamos a cabeça à esquerda e à direita, e em sorriso, ou em urgência, ou com receio… procuramos o tal damo do telefonema. E invariavelmente, ele não está por perto… era jogo, golpe, manobra de diversão.
E é curioso que em geral não atacamos, estamos ocupadas com a defesa não é? Neste aspecto acho que devíamos estudar mais tácticas, ver mais jogos de futebol, talvez.
Mas parece mais uma luta que um jogo… Defendemo-nos como podemos, e é cansativo.
Da nossa resposta depende o desenrolar do papo. E às vezes nem têm mais nada para dizer, é mesmo só para saber onde estamos.
Ligou para saber onde eu estou?!
Não é por preocupação, ou para me visitar, para me fazer uma surpresa ou por pura partilha de quotidiano, não. É para saber.
Eu não sei porquê, mas desconfio.
E oiço as estórias dos maridos e dos namorados que põem um chip no celular das mulheres, para saber onde estão. E parece que mesmo assim ligam e disparam o mesmo tiro “estás aonde?!”, para confirmar.
E também de mulheres que aparecem de surpresa, que lêem as mensagens e verificam a lista de chamadas…
E dizem-me que os homens mentem mais mas as mulheres mentem melhor…
Mas para quê? O que conseguimos nós com tanto malabarismo de enganar e de descobrir. Não é cansativo? E é que n’um vale a pena!
Enquanto escrevo o celular toca, e em vez do habitual “alô!” eu disparo,
- Tás aonde?! – do outro lado há atrapalhação e a chamada é bastante curta. Parece que pelo menos desta vez, ganhei. Não ganhei a guerra, mas nas relações homem mulher que às vezes se assemelham a batalhas, ganhei uma...

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Águia em ruínas











Na cidade de Quelimane há uma trupe de actores. Actores 24 horas por dia, sem salário, sem peças, sem espectadores, mas com um teatro. Pelo menos o que resta dele.
E desconfio mesmo que estes são actores sem vocação, sem casting, sem sonho de estrelato ou de fortuna repentina. Sem aparecer na TV, sem sair foto no jornal.
Na cidade de Quelimane uma trupe de actores forçada habita um teatro em ruínas.
E o peso deve ser grande, porque os shows são diários, o espectador pode aparecer a qualquer momento e todas as acções que são feitas aqui, neste contexto, são teatro.
Eu apareci hoje. Está sol, estou em Quelimane em itinerância com a companhia de teatro Gungu, passamos à frente do teatro, e o Gilberto, na curiosidade que lhe é própria, abranda o jipe e salta para a fachada. Está tudo completamente fechado mas não desistimos à primeira, perguntamos por ali e parece que se dermos a volta por detrás se consegue entrar.
Claro, pela entrada dos actores! Passamos um café fechado, duas casas de chapa e uma machamba, subimos os degraus de cimento meio destruídos, e abrimos a pequena porta de madeira que vai dar ao palco, espreitamos.
A visão é poética. E triste.
Duas ou três famílias dividem entre si os exíguos camarins, para chegar a casa atravessam o palco, do qual só restam algumas tábuas, que se equilibram de forma precária sobre um sub-palco inundado de água – verde.
Este teatro é casa destas pessoas.
Os teatros são património cultural de um país.
Os teatros têm estórias dentro deles, e elas vivem dentro daquele espaço mesmo depois da última representação. Os actores que por ali passaram descansam ainda naqueles camarins, maquilham-se, riem, sentem os nervos, aclaram a voz. James Dean ainda nos olha “A Leste do paraíso”, como no dia da estreia.
Um teatro tem presenças.
Um teatro vazio é um espaço triste, a sensação de “fim de festa” depois de acabar a apresentação de um espectáculo é… solitária.
Um teatro em ruínas é… trágico.
Eu, na coragem própria dos inconscientes, avanço pelas tábuas, a minha trupe grita, mas eu faço apenas o que vejo fazer, sigo as pisadas do mais velho destas famílias que indica o caminho quase sem falar à mulungo.
Desço para a plateia e fico a olhar.
O cenário é chocante. E a cena… a cena é tão bela. Parece retirada de uma performance pós-moderna, daquelas tipo: “o teatro na vida de todos os dias”, “a dança no quotidiano”, “cenários urbanos”… mas estas pessoas vivem mesmo aqui. É impressionante e eu estou impressionada. É preciso fazer algo por estas pessoas.
E pelo teatro…
Eu visito teatros com a mesma devoção com que outras pessoas visitam igrejas ou mesquitas. Com fé.
E os teatros foram feitos para estar vivos! Bonitos, limpos, confortáveis e cheios, cheios de gente. Aplausos, risos e dores, tudo acontece num teatro.
Nos teatros estreei-me, descobri-me, apaixonei-me, fiz amor, perdi-me… E fui feliz e sofri com aquelas pessoas que me acompanhavam, com aquelas outras que inventava ali, naquele palco, durante aquele momento – efémero, mágico. O teatro é lugar de partilhas, onde confessamos o inconfessável, onde assistimos ao inaceitável, onde sonhamos o impossível…
E tudo está lá naquele teatro onde tudo aconteceu e em todos os teatros onde todas as paixões e ódios, tragédias e comédias aconteceram. Vive no veludo das cortinas, nos painéis das paredes, nas cordas que levam à teia, nos telões dos cenários, nas tábuas do palco, nos estofos dos assentos, nos tecidos das roupas que vestem os actores, em cada prego e farpa da madeira.
E tudo se sente e se ouve no fosso da orquestra, nas vozes dos actores, na magia acústica do espaço…
Mas lá, em Quelimane, está em ruínas.
O Cineteatro Águia está a cair. E como este muitos teatros por todas as províncias de Moçambique caem. O Kudeca, em Tete, vai ser demolido e no seu lugar vão fazer um hotel…
E os actores? Os actores, os muitos actores de Moçambique, é para representar aonde, afinal?

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Da posse II







(continuação)
Agora ainda estou mais intrigada… veio o guarda? Algum dos dois me engana… mas e se é uma emboscada? Apanharem-me aqui nas escadas ou lá em baixo… é fácil… e eu que faço? Já me imagino de cabeço baixa, “porque é que saí de casa, porque não sou sensata?”. Mas a sensatez não é a minha característica mais marcada, e cada um tem de perceber seus pontos fortes e usá-los!
Ganho coragem, amarro a capulana, e lá vou eu!
Bom, sentia-me melhor se levasse uma arma… mas eu não tenho armas… um spray! Pelo menos nos filmes funciona! Confiante nas elaborações da ficção, e armada com um desodorizante DOVE go fresh, um telemóvel e uma chave desço para a rua. Mas não desço fresca, vou receosa, confesso.
Troco algumas palavras com o guarda, que continua a dizer que está tudo bem. Acrescenta que as portas de trás do carro estavam abertas e o porta-luvas também – que parte disto é que lhe parece bem é para mim um mistério, talvez seja mestre da filosofia da partilha universal, ou talvez seja só porque o carro não é dele!
Sei que também não é meu, as coisas não são nossas, reforço a minha consciência do facto.
Vou até ao dito carro, as portas estão fechadas, e mesmo bem fechadas, porque do lado do condutor a fechadura foi tão forçada que a chave nem entra. Vou pelo lado do pendura, entro, a chave nem entra na ignição…
Saio e dirijo-me ao mano a quem devo um pedido de desculpas:
- Tem razão mano, entraram ali, chave nem roda agora…
- Eu disse, senhora estava a desconfiar! Eu que salvei, moços lá e eu fiquei só assim a olhar, só! Nem disse nada. Eles atrapalharam, foram embora. Se não fosse eu agora estavas a chorar aí.
- Ya… peço ficar de olho essa noite, amanhã conversamos.
- Ya, ok… Se eu apanhar tiro desses aí eu não sei… Eu nem devia ficar aqui com esse jack nem nada, talvez disfarçar eu não sei… esses podem voltar, se fazem isso assim, de dia, de madrugada podem vir me complicar que nós somos esses moços que impedem de fazer seus business.
- Te agradeço muito mano - tenho um boné no carro e entrego-lho para o disfarce da noite.
Agradeço de novo e ainda olho para trás, ele está com um boné do 10 de Junho - dia de Portugal, e ainda lhe vejo a expressão ofendida de eu ter desconfiado…
Na entrada do prédio o guarda está a jantar, de costas para a porta, eu vou dizer-lhe qualquer coisa sobre o carro, que ficou lá no mesmo sítio, que ele vigie, entre duas garfadas ele confirma que sim, claro.
Ao Jaimiro aqui, publicamente digo Sorry e thanks, mano!
As outros manos, peço deixar meu carro, porque a partilha universal até entendo, mas e pagar o carro, podemos partilhar?
Já agora, aos que levaram a máquina fotográfica - emprestada, claro - peço trazer que ando com câmara emprestada, preciso dela este mês.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Da posse




As coisas não são nossas, são-nos apenas emprestadas por um período limitado de tempo.
Todos o sabemos, não existe pertença, nem de pessoas, objectos, animais ou sentimentos. Nada é meu, é quando muito nosso, de todos.
Eu sei disto, tudo pode partir. Daqui a um minuto.
Quando comprei o meu carro brincava, estacionava-o e quando voltava dizia sempre: “o carro ainda está ali, o que é bom sinal.” Mas a brincadeira, como acontece sempre, tem um fundo de verdade, é como se ainda não acreditasse que o carro é meu.
Sei que basta um gesto, um desequilíbrio milimétrico nas chuvas, nos ventos, no interior da terra – para tudo mudar.
Mas hoje, por um momento, tive medo! E as filosofias ficaram de parte.
Ainda é muito cedo e eu estou em casa, é coisa rara, mas hoje decidi trabalhar em casa, e aqui está a prova de que o trabalho não compensa e o crime…
Alguém bate à porta, não é muito comum e por isso eu não abro. Pergunto, como me ensinou a fazer a minha mãe:
- Quem é? - ninguém responde. Pelo vidro martelado consigo ver que é um homem alto, de blusão de pele,
- Quem é? - depois de mais um tempo responde:
- É o guarda. - o guarda do prédio é baixo e já com uma certa idade, este rapaz é alto e jovem, entreabro a porta,
- Senhora vem lá ver que alguém entrou no teu carro! – o meu coração bate mais forte, o meu carro!! Mas depois desconfio – como a minha mãe me ensinou a fazer,
– Mas tu não és meu guarda! Meu guarda não está lá?
- Sim, mas eu que vi: dois moços, um claro e outro muito escuro estacionaram assim, colados teu carro e entraram, eu que salvei, iam roubar teu carro senhora, agora mesmo iam! – esta parte incomoda naquele lugar onde a filosofia da partilha não chega, levar meu carro??
A mim apetece-me sair a correr e ir ver se ainda está lá – mas assim para além da filosofia também se vão os conselhos da mãe, e ainda o carro, é muita coisa para perder numa noite mesmo para quem questiona isto da posse…
- Mas, lá em baixo tem muitos carros, qual é que é meu? – preciso de falar mais com o tipo para estudar se é mesmo verdade… tenho vontade de sair mas as escadas são escuras e já me imagino a ser apanhada numa ratoeira, e oiço mesmo as palavras da minha mãe: “eu não dizia?”; e as minhas amigas: “nem eu que sou moçambicana não faço isso!”; e os meus amigos: “tens de ter um homem contigo, sozinha vês o que acontece?”; e todos lá na tuga: “pois, África é muito perigoso” – ele não sabe ao certo mas responde,
- Eu que confirmei com esse moço Giro, “esse carro não é daquela branco daqui?” É teu carro! Um… cinzento.
- Chama lá meu guarda – ele sai, chateado. Eu estou certa de que é mentira e penso que ainda bem que não segui o primeiro impulso, as coisas que podiam acontecer!
Mas o rapaz volta, com o meu guarda,
- Senhor guarda, com meu carro está tudo bem?
- Sim senhora, tudo bem. – o rapaz não cabe em si,
- Mas, se tem as portas abertas?! Dois moços estavam lá dentro! Eu é que vi.
- Senhor guarda peço ir ver.
- Ok, você que sabes!! – e, na verdade ainda duvidando, lanço um vago
- Obrigada moço! – ele já se afasta num
- Aaaaaaaaaaaaaahhhhhh senhora! - eu fecho a porta. Meu coração continua de batida agitada e não estou satisfeita com a solução…
(continua)

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Das despedidas




Saio de casa, passo em frente ao CFM. Passo as paragens cheias de pessoas. As mamãs carregadas de trouxas na cabeça, os bebés adormecidos nas costas, os pais arrastam as crianças mais pequenas por um braço. Aqui as pessoas apanham os machibombos para Lllllllllllllllllllllllllllllllllllááááááááááááááááááaaaaaaaaaaaaaaaaa! Para longe.
E não vejo cenas de despedidas.
Aquelas cenas, sabem do que falo, o cinema está cheio delas, e as estações rodoviárias, de metro, de comboio, lá de Portugal também. Daqui as pessoas partem. E é verdade que também chegam mas – talvez fruto da minha origem – quando olho estes espaços vem-me sempre a melancolia triste da saudade. O sentimento precoce das partidas.
Sinto que aqui, em África, se vive com mais intensidade o agora. E por variadas razões.
E as despedidas são fugazes gestos quotidianos. Bênção de boa viagem talvez, envio de saudações para os que estão lá também, mas só.
Têm razão manos, porque as despedidas, são armadilhas… tal como nas visitas relâmpago e nas viagens os encontros têm a falsa magia do efémero nas despedidas também o sentimento é falso. Ali tudo o que aconteceu parece bem, e fica doce o passado, mesmo que muito recente, e fica mágico o futuro, mesmo que impossível. E o momento, esse sim, real, quase não o sentimos… a melancolia, a tristeza, ou mesmo a alegria que possa existir não são do minuto em que nos separamos. Isso não existe, ali, naquele café, naquele hotel - o que vive ali é o que não devia ter direito para viver - o passado e o futuro. E a mim as despedidas apanham-me sempre… engano-me.
Sinto-o no abraço especial dos amigos de infância, no passo atrás de uma separação, no último segundo antes de assinar um divórcio, no olhar lacrimejante da mãe, no “até logo” vago dos amantes de uma noite, no afago triste no focinho de um animal que já não sentimos nosso… nessa melancolia estranha que vem só da insegurança do tempo - quando? E se não nos encontramos nunca mais?
Há qualquer coisa na despedida que nos faz querer mais coisas da pessoa e daquele sítio para onde vai. Coisas que não queremos de facto! E alongamo-nos em lamentos, interiores ou verbalizados: que não fizemos isto ou aquilo, que passou tão depressa… E muitos de nós, dos que não resistimos ao silêncio e tememos a dor, seguimos em promessas: mas vemo-nos outra vez, logo que chegar ligo, eu volto, e para a próxima fazemos isto e mostro-te aquilo… E tantas vezes as promessas são falsas, mas acreditamos, faz-nos sentir melhor…
E se todas estas questões ocupam a nossa mente nem sequer estamos bem aqui, eu já não sinto a pessoa cá e ela também já está meio lá… a despedida dói, porquê? Aquele momento de fechar a porta, adiamos - os olhos na fresta. No desligar do telefone brincamos com os namorados: “desliga…”, “agora! Desliga tu”, “ya, vou desligar, ta a acabar crédito”, “oh! Sim, desliga!”, “afinal?”, “na wenna? Desliga lá”, e em tom cada vez mais meloso “mas não desligaste…”
E mesmo nos aeroportos, quando passaram a segurança, o corredor, quando se fechou a porta do avião, nós espreitamos, em bicos dos pés. Eles, os que partem, deslocam o pescoço em ângulos impossíveis, para quê?
O momento da despedida só é diferente dos outros psicologicamente. Só custa porque sabemos, em audaz certeza, que vamos deixar de ver aquela pessoa.
Mas não é assim, percebem? E das duas uma, ou passamos a sentir assim todos os momentos, porque a verdade é que não se sabe quando estamos a ver pela última vez uma coisa… ou então tratamos as despedidas como momentos assim, normais: Tata!

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Os rigores da Lua




“Na tua adoração conserva pura a minha casa para os que dão as voltas, para os que se levantam para orar, para os que se inclinam e para os que adoram.”
Foi enviada pelo deus e oferecida aos homens.
Naquele tempo eram dois esses seres, um homem e uma mulher, e viviam num lugar onde o clima era ameno, a comida muita, a companhia pacífica, a vegetação bela, luxuriante, doce.
Foi há muitos, muitos anos que o deus enviou a pedra.
Há muitos, muitos anos uma pedra branca caiu do céu, foi entregue aos homens num jardim idílico. A pedra da purificação.
Agora a pedra está negra dos pecados dos mortais, e os homens crentes visitam-na. Usam pedras pequenas para atacar os demónios e ao deus oferecem seus gestos: o da peregrinação, o da prece, da purificação, da oferta sacrificial.
A tribo prestava homenagem a al Uzza, Vénus, a estrela. E deslocavam-se em peregrinação para a adorar.
Peregrinam a Caaba para ver a pedra sagrada.
Os quatro pontos cardeais orientaram a construção quadrada e protegem-na. Sete vezes a devem envolver, nos desenhos perfeitos dos movimentos circulares. Aqui, neste momento, todos são iguais; nas vestes, na vontade, na fé, nos espíritos purificados.
E mesmo nos outros momentos da fé, as gentes cobrem as zonas íntimas do corpo – o que no homem vai da cintura aos joelhos e na mulher é todo o corpo.
Respeitam na morte os animais, evitando o sofrimento desnecessário.
As mulheres guardam a beleza e cobrem-se de mantos, de véus, de panos. E escondem neles as pulseiras de mil voltas, as tornozeleiras de guizos, a pele de desenhados arabescos de henne, os cabelos perfumados de óleos de flores, os ventres decorados de moedas e fios.
E pede o deus que ao caminhar não façam vibrar as jóias que assim revelam a beleza escondida, a beleza secreta.
Aceitam ou recusam, a religião ou o casamento, na repetição por três vezes das fórmulas mágicas.
Cinco vezes ao dia direccionam seu olhar para a casa sagrada. Cinco vezes ao dia se purificam.
E respondem à inveja da lua, que durante um tempo, apenas por ela determinado, rouba ao sol a partilha com os homens dos prazeres da comida. Durante este tempo só a lua os convida para a sua mesa.
Na minha casa escuto o chamamento. Dos muitos cantos da cidade nós escutamos os chamamentos, mas nem todos avançamos. Eu fico-me a escutar, e, pelo menos por uns segundos faço coro com o muezzin:
“Aallllaaaaaaah uak bahaaaaar”
Nem todos adoramos Vénus, a estrela, nem todos prestamos cultos ou observamos trajes e rigores mas todos esperamos a grande festa, e, aos meus amigos seguidores do islão, pergunto eu: onde me levaram na festa do sacrifício?


publicado no jornal @verdade

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Respirar




Viajei. Viajo sempre.
E ouvi-as nas lendas. Por todo o lado, entre as montanhas da china, nas encostas dos vampiros e nos vales das deusas gregas, nas estepes eslavas e nos lagos aqui de casa - os africanos.
Nos lugares onde o vento sopra livre e mesmo nos bairros mais fechados das cidades, podemos ouvi-los…
Soltam-se do bater das asas dos pássaros e caem devagar, feitos em perfumes, no rodopiar dos frangipanis, em caminho até ao chão.
Todos sabem, de Norte a Sul, de Este a Oeste.
Até lá, acima das estrelas, e mesmo lá no fundo, nas profundezas, é sabido: as respirações são…

E eu, eu não sigo pelos caminhos mais pisados, isso é bem claro, e até estou habituada a encontros invulgares, surpreendentes, estranhos, em situações vulgares, banais, quotidianas… mas…

Dizem que estão guardadas no ponto três dedos abaixo do nosso umbigo, e que temos um número limite, definido na altura do nosso nascimento.
Está no nosso corpo. Aqui, na zona mais sensível de nós.
Está armazenado e já existe, mesmo antes de nascermos.
Em cada um de nós, o número total de respirações a que temos direito já está definido. E podemos usá-las como quisermos, quando quisermos. Mas quando acabam, morremos.
Interrompo a ideia e deito-me para trás. Inspiro e expiro suavemente, alongo os tempos, e sinto como consigo duplicar, usando bem o ar no corpo, em cada uma das respirações. Saboreio o ar como saboreio a primeira colherada de uma sobremesa ou o primeiro gole de um bom vinho, ou aquela fatia de torrada, aquela do meio - sim, não deixo para o fim, é por aí que começo, devemos usar as coisas enquanto as temos - saboreio bem as respirações.
E sei que são minhas, aquele número.
A respiração é vital, podemos ficar alguns dias sem comer, menos sem beber e poucos minutos sem respirar.
Mas hoje, quando abri a torneira não saiu água…
E penso: será que existe algures armazenada a quantidade de água que cada um pode gastar?? Eu adoro banhos e agora, em África, envergonham-me os litros… vivo num dos bairros mais verdadeiros da cidade e é para mim impossível não pensar que fui eu… gastei-a.
É para todos nós coisa estranha esta de pensar que pode ser o depósito, o meu, o teu, o de cada um, que secou… mas houve um tempo em que era assim, a água e a comida, o sol e mesmo a chuva vinham mais ou menos do mérito da descoberta, da procura, do trabalho, e era proporcional, proporcional ao esforço que cada um fazia para satisfazer isto, que para alguns de nós, são as necessidades básicas…
Vivo em África, e aqui os tempos são outros…
Bom, a partir de agora - pelo menos por uma semana - meus duches serão mais curtos, o champô mais diluído, se também aí as quantidades que me estão destinadas são as que tenho no frasco?...



publicado no jornal@verdade

Da protecção




Agora Estou em África.
E na nossa imaginação aqui o clima é quente, as cores são fortes, os cheiros são intensos, os tempos ritmados.

Aqui vive-se perto da natureza, da origem do mundo, e nesse viver simples encontra-se algo perto da libertação, da felicidade.

Aqui é o lugar dos encontros, das viagens para o interior de nós. Das mudanças de vida, de consciência, de destino.

E eu não sigo pelos caminhos mais pisados, isso é bem claro, e até estou habituada a encontros invulgares, surpreendentes, estranhos nas situações mais vulgares, banais, quotidianas… até a algum tempo não sabia mas eu, eu vim pelos espíritos, é aqui que vivem.

Vim pelos que vivem nas colinas, nas montanhas rochosas. Nas correntes fortes dos rios e nas águas turvas dos lagos. No escuro das grutas e no abanar suave dos coqueiros. No guincho dos morcegos e no bater das asas das águias. Dentro das lamas, entre as areias.

Aqui encontrei o espaço e o tempo, aqui encontrei a minha casa.
Aqui recebi a chave - bom, durante algum tempo era apenas saber o truque para abrir a porta através do vidro partido… mas foi assim que lhe senti os sons e as forças, e foi assim que a cuidei.
No primeiro dia desço para uma primeira cerimónia de purificação: incenso, queimo incenso em todo o lado, queimo a pele com as brasas. Mas não surgem os sons. Na segunda visita sim, canto uma música que já quase desconhecia e ela surge sem aviso, surge-me primeiro no coração, depois nos lábios, e só depois na consciência:
“eu tenho um anjo,
anjo da guarda,
que me protege
de noite e de dia,
eu não o oiço,
eu não o vejo…”
para mim esta música é antiga e fala de mim, de lá – do lugar onde vivia.
Aqui ainda não sei, não conheço os espíritos de cá.

Hoje o Índico está morno, escuro e perfumado de algas, o vento rendilha as ondas de espuma branca. Caminho, sento-me, recebo na brisa a energia da Lua. Feminina e quente.
Os momentos são para mim e há muito que não admito intrusos.
Aqui tenho a conquista do tempo. O tempo é meu.

Aproximo-me da água e experimento a sensação que só um pontão que avança para o mar - um falo de rochas e pedras alinhando seu caminho mar dentro, recebendo nas costas as ondas, na ponta as algas e as espuma - pode dar. Avanço. O Índico está carregado da energia da Lua e o chamamento é quase verbal, não penso muito, dispo as roupas, avanço para a água, esta maré é para mim.
Mergulho numa onda e volto para as minhas roupas, molho as calças entre as pernas, o casaco no tronco, os cabelos pingam pelas costas abaixo, saio da praia com a cor viva e forte, doce e quente, de um banho de mar assim, solitário, bom.
Já dentro do carro o meu corpo parece que desce, os músculos descontraem apesar do frio, e como acontece sempre não volto para casa… ainda não conheço os espíritos daqui…



publicado no jornal @verdade

Jobando na Rua Araújo II


Trabalhamos na Rua Araújo.
Dois passantes saídos do bar da esquina observam a cena:
- Quem morreu?
- Aquele de preto, aquele escuro.
- O que tá de pé? – dos dois este é o que está visivelmente mais tocado pelo álcool e olha o colega de lado –
- O que tá de pé morreu?
- Hum! Aquele ali dispara, aquele cai e morre e depois acaba.
- Eh! – exclama. De novo observa a cena e voltando-se para o amigo, o efeito do álcool alongando-lhe os tempos –
- … Mas ele… o que tá de pé… não morreu?... – volta ao seu olhar enviesado para o colega, desequilibra-se, quase cai -
- Pois, mas agora dessa vez ele não morreu, acho que não disparou bem, o outro, aquele claro! Sim, alguém falhou e não disparou.
- Mas morre? Hoje?
- Se já morreu! Da última vez morreu!! Parece que não ouves!! Não percebes português?? Estes são portugueses, tu parece que não percebes português!– o outro olha tudo à sua volta, como se confirmasse que outros ouvem o discurso do colega, não há reacções, todos olham a cena, ele conforma-se -
- Ok, mas fez o quê ele?
- Sei lá! É agora preciso fazer alguma coisa? Para morrer??

Na rua um homem rouba o espelho de um dos carros da equipa, há apoio policial que logo intervém:
- Onde está o espelho? – o polícia faz-lhe uma rasteira e ele cai de cara no chão, o homem não parece surpreendido com o tratamento -
- Está aqui perto..
- Perto aonde? Devolve o espelho!!!
- Não tenho boss, está com manos, aqui perto.
- Que manos? Diz!
- Eu não digo nada… eu não sei, tá com os manos.
- Hás-de ficar aqui, nem que fiques aqui três horas de tempo! E vais para a esquadra, arreio-te! Diz!
- Eu não digo nada. – o polícia algema-o, deita-o de novo no chão, rosto para baixo, o homem não parece surpreendido.

Montamos a luz na varanda da pensão da esquina. Na subida para o primeiro andar encontro um casal: ele, jovem, bem vestido, ela ainda quase menina, os pés a tremer nos saltos finos – o olhar dele vai baixo, no guardar do troco do pagar do quarto. Quando levanta os olhos esbarra nos meus, eu sigo de fugida, e a ele as cervejas já lhe fazem alongar muito os tempos. O olhar segue-me e o acompanhar do movimento do curvar da escada que subo desequilibra-o, escorregam os pés e cai sentado nos degraus. Olha-me, olha a sua acompanhante mas os olhares não se encontram – nela, a impaciência olha no relógio o passar dos minutos do primeiro encontro da noite. Na rua está muito frio ele espreita à porta, seguindo-me o rasto, mas já não sai, volta-se para a negra dos lábios doces e pergunta apenas:
- Ela também é de cá?

Filmamos na Rua Araújo até às 5horas e quando passo para casa, no final, grita a Jeje:
- Ei, vizinha, amanhã? Voltas amanhã para trabalhar?
Na passagem duas ou três pessoas voltam a cabeça, eu só respondo:
- Tata!


publicado no jornal @verdade

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Jobando na Rua Araújo




Ela grita bem alto, na rua Araújo - ali no cruzamento com a Rua da Mesquita - todos ouvem, todos olham.
Os estrangeiros? Nem um olhar - entre o pudor de observar o corpo bem despido e bonito e o forçado profissionalismo fingem que ignoram - todos repentinamente surdos, cegos, sem desejos.
- Assim estão aqui, não é? A incomodar meu trabalho! – depois em tom baixo, para um dos curiosos que observam - E eu hoje até estava de folga mas foi esse meu amigo da Mcel que me disse que vocês vinham aqui na minha esquina, e eu vim logo! Para, quem sabe se precisam de ajuda! Porque esses mulungos, nem companhia, não tem! E tu, queres companhia?
Os estrangeiros são nervosos, e gritam, toda a gente sabe, o mulungo grita:
- Ei aqui estamos a trabalhar, quando disser silêncio quero silêncio, ok?
- Nada! Porque não vão apanhar esquina noutro lado? Eu mesmo não quero ninguém aqui com constipação nos sovacos! Mas aqui minha terra, eu não calo! Se estão no meu sitio! É para eu trabalhar aonde afinal?
O estrangeiro não reage e continua a trabalhar. É preciso continuar a trabalhar, como se ignorar o real dos lugares que nos incomodam, que não entendemos, que chocam com o nosso viver… como se esse ignorar o enfraquecesse.
- Ok, atenção vamos começar… - ela continua o grito -
- Aqui não há constipação nos sovacos!! Esta esquina é de qualidade!! – eu decido esquecer o grupo onde supostamente pertenço - poucas coisas me dão mais prazer - e sigo nos caminhos difíceis e ambiciosos da comunicação -
- Mana, como estás? Tudo bem? - ela é apanhada de surpresa, compõe os cabelos, desce a mão que mantinha na anca, quase na linha da mini mini-saia - desde que começara a falar, e diz com pompa, as palavras bem articuladas nos lábios pintados de laranja –
- E eu estou bem, não sei do seu lado!
- Mana, qual é teu nome?
- Jeje, obrigada! – mudando repentinamente o tom, o olhar, o gesto.
Os estrangeiros continuam a utopia do ocidente, desde que continue o trabalho tudo vai bem -
- Silêncio! – não se faz silêncio mas o silêncio foi pedido e seguimos o trabalho, e isso já é alguma coisa -
- Som? – pede-se que o som começa e ser registado e a verdade é que merece ser registado, embora os micros apontem para a cena…
- Está a andar…
- Eu aqui não quero ninguém encostado sem pagar!! E eu quero trabalhar e não quero minha cara aí nas máquinas, que eu, hi! Mesmo ao Faces não vou, que não gosto! E eu…
- OK, CORTA!!
- Jeje?
- Sim mana!
- Agora ali os whites estão a trabalhar e se eu pedir para calar tu calas, né?
- Ok mana, não tem problema, obrigada!
- Atenção, Som?
- Está a andar…
- Porque se eu na vossa terra for…
- Jeje?
- Sim, obrigada?
- Miela-te lá! Que eu também estou a jobar aqui!
- OK!

Filmamos na Rua Araújo até às 3horas e quando passo para casa, no final, grita a Jeje:
- Ei, vizinha, amanhã? Voltas amanhã para trabalhar?
Na passagem duas ou três pessoas voltam a cabeça, eu só respondo:
- Tata!
publicado no jornal @verdade

Ntsongwàna Maputo


São carregadas às costas, bem perto do corpo da mãe.
Andam em grupos fardados de verde e branco, a caminho da escola.
Caminham descalças, brincam com inventos de brinquedos tão reais como pneus, paus, arames…

Ao lado da minha porta vêem dar-me os bons dias:
- Titia, quando vais nos levar ao teatro?
- Mas pequenote, essa peça não é para crianças… - ele cresce na ponta dos pés
- Mas eu já tenho 10 anos!
- Um dia levo-te.
- Ah, estás a mafiar!

Aqui, em África as crianças são muito importantes, dizem-me. São a riqueza das famílias, as meninas significam um dote, os meninos trazem para os pais uma outra filha, a nora.
Nalgumas tradições as crianças são educadas pelos tios e não pelos pais, para fortalecer a unidade familiar, noutras logo que a menina atinge os cinco anos de idade é entregue à avó para tratar dela na velhice.

Muitas vezes neste continente se espantam por eu não ter filhos, e saem as perguntas,
- Mas senhora não pode? – dizem com tristeza;
- Não quer? – o desdém estampado no rosto.
Diz um provérbio africano “Se a mulher não pode ter filhos, deixa-a carregar nas costas uma pedra.”
E sinto cada vez mais o desperdício.
Os deuses castigam, bem sei, quando recusamos as coisas boas.

E tantas vezes deixamos a riqueza pelas ruas…
Maputo tem crianças nas ruas, a pedir, a mendigar.
Não sabemos todos, de cor, as esquinas, os degraus, os semáforos onde estão? Não conhecemos tão bem os rostos, a cor dos andrajos, a frase com que nos abordam, a maneira como dançam o som do chapa que passa, ou como se batem pela moeda que receberam. As de olhar triste e assustado, as de olhos sabidos e atrevidos. As que falam, as que só estendem a mão. As que correm para o carro. As que ficam a olhar mais de longe. As que tentam vender coisas, guardar o carro, carregar os sacos. As que podem roubar e matar. As que dormem enroladas numa camisola e as que se aninham juntas, em famílias improvisadas. As que jogam à bola com pedaços de papel. As que são respeitosas e as que são rudes.
Não sentimos todos a hesitação da esmola, o que dar, se dar. Moeda, comida, mais ou menos meticais para o que vive na rua. Todos sabemos, todos conhecemos. Então?

Saio do restaurante, a noite está fria. Uma criança descalça passa, veste apenas uma t-shirt, demasiado grande para o seu tamanho. Senta-se no chão, encolhe as pernas e estica a t-shirt até a tapar dos pés à cabeça, deita-se de lado, em posição fetal, e prepara-se para dormir enrolada no seu casulo de algodão, nas costas ainda se vê desenhada na cor gasta o logótipo da BP.

No caminho para o bairro da Liberdade passo o caminho-de-ferro, todos os dias aproximadamente dez crianças trabalham aqui, vendem rolos de papel higiénico das oito da manhã às dezoito horas. Estão de pé, carregadas com os enormes sacos,
- Cinco! Cinco! Cinco! Cinco! - gritam o seu produto para vender, perseguem os carros, recebem a moeda… todos os dias.

Na rotunda de entrada em Maputo, naquela água parada lavam as pernas algumas crianças, despem as calças e esfregam no alcatrão os pés. Um carro passa, salpica-os, de novo se baixam a apanhar a água, com cuidado, lavam as pernas.

Nenhuma criança devia viver assim.


publicado no jornal @verdade

Meu filho é minha mãe


Senhora?... senhora tou pidir falar, posso falar?
Senhora, meu filho, aquele alto, aquele Calado caiu, partiu braço! Eu zanguei, zanguei com meu marido, estou zangado com aquele aí porque fez meu filho subir lllllá para mudar a chapa - porque estamos a aumentar casa e para carpinteiro arranjar, arranjar lá era preciso tirar chapa - então ele mandou subir meu filho, eu zanguei, muuuiiito, muuuiito, porque mandou meu filho, porque não foi ele? Pessoas grande! Não podia ir??
Meu filho caiu agora, o MEU filho. A senhora não comprou cama para receber sua mamã? Então, meu filho é que vai cuidar de mim, e meu marido não cuidou ele, se ele é pessoa grande crescida devia saber para cuidar, não é?
Foi de propósito, fez cair o meu filho. Não foi azar aquilo aí. Eu sofri muito para nascer essa miúdo. Não sou eu que lhe nasci? Sou eu, não é ele! Ele só lança lá aquilo, só, não lhe custa nada. Até vê os doces, com isso aí, ele lhe custa fazer bebé? Não custa nada. Eu sofri, eu é que lhe carreguei na barriga e para ele nascer vi muitas coisas, foi difícil esse bebé aí, vi muitas coisas senhora, aqui, aqui – olha o céu – e vi cova perto de mim, assim para ele me nascer. E papai faz isso? Não está certo, estou zangada, zangada, MUITO, MUITO!
Eu zanguei muito, muito, até lá enfermeira perguntou de onde eu era, que zangava e eu disse manhambane, e ela disse “Hiiii, manhambane? Esses aí como zangam! Até marido, não consegue nada! zanga até marido!”
Eu chorei muito, muito, muito lá no hospital, e enfermeira até disse isso aqui não é azar, de cortar perna ou rebentar braço, nada, isso aqui é azar pequeno, não deve chorar. Mas eu chorei muito, muito, ele partiu aqui – aponta para o pulso - e vai médico operar e ver para pôr ferros e coisa e coisa, tá a ver?
Mas zanguei!
Porque homens não entende. Se nós pensa que homens é nosso amigo não é verdade. Aquele meu marido ali só gosta disso – aponta entre as pernas – só isso que ele quer só! Aquele meu marido é maluco, homens só gostam de nós para estar assim, assim a abraçar, beijinhos e tudo, para me ajudar na minha vida e ser amigo, aquele ali? Nada! Eu esta semana nem falei bem com ele, porque lhe encontrei a namorar a outras mulheres, sou eu que trabalho senhora, e se ele tem dinheiro logo vai namorar, só quer mulheres, só mulheres esse aí! É maluca. É meu amigo só à noite, só! Homem só quer tuas pernas, não é assim, senhora? Então, homem não se pode confiar para ajudar e assim, temos nós de confiar umas nas outras. Eu lhe falo assim, senhora, não leve a mal, eu lhe falo como vou na minha casa e você pode me falar como vai. Senhora eu não fui na escola, quando eu era pequena a minha mamãe morreu, e meu pai tomou outra mulher, lá. Essa outra mulher não foi comigo bem, e meu pai eu acho que estava maluca da cabeças, porque esses homens é maluca mesmo, sabe? Não sabe cuidar crianças, e aquela senhora não me apanhou bem, nem soube lá me meter na escola nem nada, para eu aprender. Não sei nada, senhora. Só o meu nome que eu sei fazer ali, só isso foi D. Paula que me ensinou a escrever lá - Leontina.
E mesmo ela me disse e ensinou de cuidar filhos. Nós temos de cuidar os filhos, não é senhora? Quando estão na barriga e lá no hospital o médico diz, está aqui o filho, é preciso lhe cuidar, cuidar bem. Porque senhora, esse meu filho é minha mãe!


publicado no jornal @verdade

Moçambique in love


Desde que cheguei que são muitos, e só vão aumentando! E é tão constante que acho digno de nota, e alguma coisa deve ser feita!
Na rua estaciono o carro, os rapazes comentam:
- Esta senhora!!.. Hi! Marido não devia deixar andar sozinha – e quando saio,
- Senhora, posso te cantar uma letra?
- És músico?
- Estou a pensar ser, mas quero te cantar esta minha letra, se gostares eu gravo. Porque… estou apaixonado por ti.
Na disco ele observa, de longe, exibe os passos da moda, depois aproxima-se para convidar a uma passada e na segunda dança – que não recuso, dançar com um moçambicano é sempre um prazer - revela:
- Sabes? Estou apaixonado por ti.
E de repente todos parecem Hermínio nas “declarações de um apaixonado”
Tu bem sabes que eu sou louco por ti
Que eu só vivo para te amar
E que eu não posso te trocar por nada
Que és a minha doce amada
Minha bebé
Que és o melhor que me aconteceu
E brilhas mais que a estrela lá no céu
E és para mim como uma jóia rara
Tua beleza miúda é tão cara

Eu não entendo! Porque mentem tanto os homens?
Num dia em que a insistência era maior ainda apresentei o amigo que me acompanhava como meu namorado, mas isso não ajudou nada, o rapaz seguiu em frente:
- Muito prazer, posso falar com ela, não posso? - E passado algum tempo de papo:
- Posso ficar com o teu contacto?
- Ei, ele não deixa. – digo eu, apontando para o meu falso namorado.
- Mas ele não está a ouvir, dá-me lá, eu prometo que não ligo para ti, só mando sms. – em jogo de fiel e pudica denuncio a situação ao falso namorado, ele avança e representa:
- Olha lá, então queres o número da minha namorada? Gostavas que eu pedisse o da tua?
- Não tem problema, é Lígia, 82…
Mas logo que a relação se estabelece o avanço para o “estás fora de casa”, é bem rápido
Às vezes me pergunto ai o que se passa
Será que a minha menina tem outro namorado
E quando toco no assunto tu mudas
Inventas mil estórias e me acusas
De coisas que não fiz
Coisas que nem eu sei


E depois é senso comum que o homem não suporta tudo – embora para a mim a verdade é que não suporta nada – mas mesmo quando levantam a mão todos sabemos as atenuantes dos crimes passionais e quando as mais corajosas reagem em fuga o tema “arrependimento” ainda é mais rápido a aparecer!
Ontem bebé sonhei contigo
Quando acordei não estavas aqui
Como aguentar tanto castigo
Se a nossa casa é triste sem ti
E o nosso quarto está tão vazio
Na nossa cama faz tanto frio
Sinto o coração a apertar a doer
Porque sem ti não sei viver
Eu sou um homem sou humano eu não sou perfeito
Baby perdoa esse meu jeito
Não faz assim

E aqui a mulher tudo perdoa, tudo negoceia, tudo tem volta em nome do “amor”. Porque no fundo a traição, a poligamia, tudo é normal, masculino, tradicional.
Saio com um amigo, que me apresenta outro que por sua vez me encontra sozinha e me pede o contacto, e que segue para me convidar para sair. E o “brada” perdoará?
Saio com um amigo, trocamos mensagens, passados dois dias recebo sms do telefone dele: “não manda mas msg para mim”. Ainda brinco:
- Isso é um pedido ou uma queixa?
Mas que não, não foi ele, ok… então foi a namorada não?
- Não, não tenho namorada, ouve, eu sei quem foi mas não te preocupes, não é nada.
E depois de dois encontros já me pedem em casamento e já ligam a qualquer hora disparando a pergunta:
- Tás aonde?
Mas se é que estavas a jantar
Porquê quando liguei não me atendeste
À sms não me respondeste!

O problema é que aqui… os homens apaixonam-se com muita facilidade! As palavras amor, paixão, casamento e compromisso saem-lhes da boca a velocidade estonteante.
De onde vem o amor? Eu não sei mas ele existe, não?
Mas assim? Não vai aparecer!


publicado no jornal @verdade

O pirata das batatas fritas


Em Maputo a oferta de cinema não é muita.
Há cada vez mais iniciativas que dinamizam a área como o Dokanema, o Komba kanema e a 1ª Mostra de Cinema CPLP, inaugurada esta 5ªfeira e que sob o lema “Uma comunidade, diferentes olhares” nos trás a exibição de 60 filmes da Comunidade de Países de Língua Portuguesa , dos quais 20 são moçambicanos.

Sim, começam a aparecer projectos que dinamizam a área mas é preciso muito mais porque a oferta regular, na cidade, ainda se resume à produção de Hollywood, aos clássicos do karaté indiano e uma ou duas exibições pontuais de ciclos no Centro Cultural Franco Moçambicano, no Scala, no Teatro Avenida…

Sim, a oferta não é muita e no entanto na rua, nos sacos enormes que carregam, os “piratas” vendem de tudo! E, sei que não me fica bem, mesmo nada bem, mas não censuro os que compram estas piratarias.
Eu própria incluo-me nesse grupo.
Sim, sei que é crime piratear, mas a verdade é que a maior parte das pessoas que não compra estas cópias de DVD não é pele ideologia mas porque são de má qualidade.
Pois aqui deixo a dica, encontrar o dealer certo. É preciso procurar um dos bons e depois criar aquele nível de confiança mútua que nos permite ir ao barbeiro, ao sapateiro ou ao café habitual e não ter sempre de explicar de início o que queremos, como queremos – o que eu detesto a pressão que sinto de casa vez que experimento cabeleireiro novo! – e quanto tempo vai demorar e que preço vai custar.
Eu com os DVD tenho os meus dealer, e esses trazem-me as cópias com a melhor qualidade, e as mais raras.
Quando os conheci tive de passar por todo aquele penoso processo de escolher entre as mil comédias românticas, as centenas de filmes de luta e as dezenas de acção aqueles filmes que quero mesmo ver, e que estão, invariavelmente, no fundo do saco.
Assim vi trabalhos de Wody Allen, Tim Burton e Irmãos Coen, tudo no conforto do meu lar e muitas vezes no dia da estreia!
Sim, eu sei que é pirataria, não se faz, então e os direitos de autor e tudo isso?
Sim, eu sei que sou culpada.
E pago por isso. Tudo se paga nesta vida! E confesso que muitas vezes o visionamento é feito em agonia. Porque os dealer são fiéis, mas quando procuro o último filme de Quentin Tarantino e só há uma cópia, malgrado o trato é essa mesma que me é vendida com a mesma enfática promessa:
- Senhora, é boa cópia essa, confia, é de qualidade, se não for boa pode trocar.
Ora é exactamente esta proposta que me faz desconfiar… mas vou para casa, na cama ajeito as almofadas, levo o chá e às vezes os bolinhos e estou preparada para ver um filme, daqueles dignos desse nome, o da sétima arte!
A cópia é ilegível.

Algumas das cópias são mesmo feitas do filme do videoclube, com os créditos e o "proibido copiar" e tudo, partes que eu passo rapidamente para a frente, corada.
Há os “for awards consideration only” em que durante toda a cópia a imagem fica a preto e branco 50 vezes e a legenda aparece, lembrando-nos do fim para o qual foi copiado o filme… É bem claro que esta mensagem não é para mim mas mesmo a ter de pensar por um segundo num prémio a atribuir faz-me distrair um pouco… e porque fica a preto e branco a imagem?
São mistérios insondáveis os caminhos da pirataria.
E, de pala no olho, continuo a tentar o visionamento.
Depois, não sei porquê mas quando aparecem os obstáculos a mente aceita o jogo e aguenta tudo!
Já percebemos até quando vai aparecer a risca no meio, a chuva em metade da imagem ou a mudança de cor, o delay do som ou das legendas. Tudo isto pode animar um verdadeiro momento de pirataria!
Há também os piratas que vão para o cinema de câmara na mão, por mim tudo bem, eu por esta altura já não sou esquisita, mas quando uns tipos chegam atrasados e eu em vez de ver o filme vejo uns casacos a passar, ou uma cabeça mais alta marca indelevelmente a imagem, o momento é mais difícil.
E uma vez até outro filme, completamente diferente, apareceu no meio da fita! É verdade que era com o mesmo actor no papel de protagonista, mas não me parece razão suficiente…
Quando a tradução é tão má que ouvimos o “piece of cake” ( no sentido de “muito fácil”) traduzido por “fatia de bolo” e “let’s make a toast” ( “vamos fazer um brinde”) por “vamos fazer uma tosta” desconfio que quem esteve atento ao texto não teve acesso às imagens…
E em todas as cenas o texto é tão vago e tão repetitivo que parece sempre o de um filme pornográfico…

Mas o pior é mesmo quando o pirata que faz a filmagem leva batatas fritas e só se ouve o seu mastigar onde se deveria ouvir a voz sensual da Scarlet Johanson aqui eu já me importo um bocado!

E a cena faz-me repensar o discurso dos direitos de autor e tudo o resto.
Na quinta-feira passei pelo Xénon e tenho comigo a programação da mostra CPLP e pelo menos por algum tempo prometo: descanso do pirata, e das batatas fritas!


publicado no jornal @verdade