sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Os rigores da Lua




“Na tua adoração conserva pura a minha casa para os que dão as voltas, para os que se levantam para orar, para os que se inclinam e para os que adoram.”
Foi enviada pelo deus e oferecida aos homens.
Naquele tempo eram dois esses seres, um homem e uma mulher, e viviam num lugar onde o clima era ameno, a comida muita, a companhia pacífica, a vegetação bela, luxuriante, doce.
Foi há muitos, muitos anos que o deus enviou a pedra.
Há muitos, muitos anos uma pedra branca caiu do céu, foi entregue aos homens num jardim idílico. A pedra da purificação.
Agora a pedra está negra dos pecados dos mortais, e os homens crentes visitam-na. Usam pedras pequenas para atacar os demónios e ao deus oferecem seus gestos: o da peregrinação, o da prece, da purificação, da oferta sacrificial.
A tribo prestava homenagem a al Uzza, Vénus, a estrela. E deslocavam-se em peregrinação para a adorar.
Peregrinam a Caaba para ver a pedra sagrada.
Os quatro pontos cardeais orientaram a construção quadrada e protegem-na. Sete vezes a devem envolver, nos desenhos perfeitos dos movimentos circulares. Aqui, neste momento, todos são iguais; nas vestes, na vontade, na fé, nos espíritos purificados.
E mesmo nos outros momentos da fé, as gentes cobrem as zonas íntimas do corpo – o que no homem vai da cintura aos joelhos e na mulher é todo o corpo.
Respeitam na morte os animais, evitando o sofrimento desnecessário.
As mulheres guardam a beleza e cobrem-se de mantos, de véus, de panos. E escondem neles as pulseiras de mil voltas, as tornozeleiras de guizos, a pele de desenhados arabescos de henne, os cabelos perfumados de óleos de flores, os ventres decorados de moedas e fios.
E pede o deus que ao caminhar não façam vibrar as jóias que assim revelam a beleza escondida, a beleza secreta.
Aceitam ou recusam, a religião ou o casamento, na repetição por três vezes das fórmulas mágicas.
Cinco vezes ao dia direccionam seu olhar para a casa sagrada. Cinco vezes ao dia se purificam.
E respondem à inveja da lua, que durante um tempo, apenas por ela determinado, rouba ao sol a partilha com os homens dos prazeres da comida. Durante este tempo só a lua os convida para a sua mesa.
Na minha casa escuto o chamamento. Dos muitos cantos da cidade nós escutamos os chamamentos, mas nem todos avançamos. Eu fico-me a escutar, e, pelo menos por uns segundos faço coro com o muezzin:
“Aallllaaaaaaah uak bahaaaaar”
Nem todos adoramos Vénus, a estrela, nem todos prestamos cultos ou observamos trajes e rigores mas todos esperamos a grande festa, e, aos meus amigos seguidores do islão, pergunto eu: onde me levaram na festa do sacrifício?


publicado no jornal @verdade

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Respirar




Viajei. Viajo sempre.
E ouvi-as nas lendas. Por todo o lado, entre as montanhas da china, nas encostas dos vampiros e nos vales das deusas gregas, nas estepes eslavas e nos lagos aqui de casa - os africanos.
Nos lugares onde o vento sopra livre e mesmo nos bairros mais fechados das cidades, podemos ouvi-los…
Soltam-se do bater das asas dos pássaros e caem devagar, feitos em perfumes, no rodopiar dos frangipanis, em caminho até ao chão.
Todos sabem, de Norte a Sul, de Este a Oeste.
Até lá, acima das estrelas, e mesmo lá no fundo, nas profundezas, é sabido: as respirações são…

E eu, eu não sigo pelos caminhos mais pisados, isso é bem claro, e até estou habituada a encontros invulgares, surpreendentes, estranhos, em situações vulgares, banais, quotidianas… mas…

Dizem que estão guardadas no ponto três dedos abaixo do nosso umbigo, e que temos um número limite, definido na altura do nosso nascimento.
Está no nosso corpo. Aqui, na zona mais sensível de nós.
Está armazenado e já existe, mesmo antes de nascermos.
Em cada um de nós, o número total de respirações a que temos direito já está definido. E podemos usá-las como quisermos, quando quisermos. Mas quando acabam, morremos.
Interrompo a ideia e deito-me para trás. Inspiro e expiro suavemente, alongo os tempos, e sinto como consigo duplicar, usando bem o ar no corpo, em cada uma das respirações. Saboreio o ar como saboreio a primeira colherada de uma sobremesa ou o primeiro gole de um bom vinho, ou aquela fatia de torrada, aquela do meio - sim, não deixo para o fim, é por aí que começo, devemos usar as coisas enquanto as temos - saboreio bem as respirações.
E sei que são minhas, aquele número.
A respiração é vital, podemos ficar alguns dias sem comer, menos sem beber e poucos minutos sem respirar.
Mas hoje, quando abri a torneira não saiu água…
E penso: será que existe algures armazenada a quantidade de água que cada um pode gastar?? Eu adoro banhos e agora, em África, envergonham-me os litros… vivo num dos bairros mais verdadeiros da cidade e é para mim impossível não pensar que fui eu… gastei-a.
É para todos nós coisa estranha esta de pensar que pode ser o depósito, o meu, o teu, o de cada um, que secou… mas houve um tempo em que era assim, a água e a comida, o sol e mesmo a chuva vinham mais ou menos do mérito da descoberta, da procura, do trabalho, e era proporcional, proporcional ao esforço que cada um fazia para satisfazer isto, que para alguns de nós, são as necessidades básicas…
Vivo em África, e aqui os tempos são outros…
Bom, a partir de agora - pelo menos por uma semana - meus duches serão mais curtos, o champô mais diluído, se também aí as quantidades que me estão destinadas são as que tenho no frasco?...



publicado no jornal@verdade

Da protecção




Agora Estou em África.
E na nossa imaginação aqui o clima é quente, as cores são fortes, os cheiros são intensos, os tempos ritmados.

Aqui vive-se perto da natureza, da origem do mundo, e nesse viver simples encontra-se algo perto da libertação, da felicidade.

Aqui é o lugar dos encontros, das viagens para o interior de nós. Das mudanças de vida, de consciência, de destino.

E eu não sigo pelos caminhos mais pisados, isso é bem claro, e até estou habituada a encontros invulgares, surpreendentes, estranhos nas situações mais vulgares, banais, quotidianas… até a algum tempo não sabia mas eu, eu vim pelos espíritos, é aqui que vivem.

Vim pelos que vivem nas colinas, nas montanhas rochosas. Nas correntes fortes dos rios e nas águas turvas dos lagos. No escuro das grutas e no abanar suave dos coqueiros. No guincho dos morcegos e no bater das asas das águias. Dentro das lamas, entre as areias.

Aqui encontrei o espaço e o tempo, aqui encontrei a minha casa.
Aqui recebi a chave - bom, durante algum tempo era apenas saber o truque para abrir a porta através do vidro partido… mas foi assim que lhe senti os sons e as forças, e foi assim que a cuidei.
No primeiro dia desço para uma primeira cerimónia de purificação: incenso, queimo incenso em todo o lado, queimo a pele com as brasas. Mas não surgem os sons. Na segunda visita sim, canto uma música que já quase desconhecia e ela surge sem aviso, surge-me primeiro no coração, depois nos lábios, e só depois na consciência:
“eu tenho um anjo,
anjo da guarda,
que me protege
de noite e de dia,
eu não o oiço,
eu não o vejo…”
para mim esta música é antiga e fala de mim, de lá – do lugar onde vivia.
Aqui ainda não sei, não conheço os espíritos de cá.

Hoje o Índico está morno, escuro e perfumado de algas, o vento rendilha as ondas de espuma branca. Caminho, sento-me, recebo na brisa a energia da Lua. Feminina e quente.
Os momentos são para mim e há muito que não admito intrusos.
Aqui tenho a conquista do tempo. O tempo é meu.

Aproximo-me da água e experimento a sensação que só um pontão que avança para o mar - um falo de rochas e pedras alinhando seu caminho mar dentro, recebendo nas costas as ondas, na ponta as algas e as espuma - pode dar. Avanço. O Índico está carregado da energia da Lua e o chamamento é quase verbal, não penso muito, dispo as roupas, avanço para a água, esta maré é para mim.
Mergulho numa onda e volto para as minhas roupas, molho as calças entre as pernas, o casaco no tronco, os cabelos pingam pelas costas abaixo, saio da praia com a cor viva e forte, doce e quente, de um banho de mar assim, solitário, bom.
Já dentro do carro o meu corpo parece que desce, os músculos descontraem apesar do frio, e como acontece sempre não volto para casa… ainda não conheço os espíritos daqui…



publicado no jornal @verdade

Jobando na Rua Araújo II


Trabalhamos na Rua Araújo.
Dois passantes saídos do bar da esquina observam a cena:
- Quem morreu?
- Aquele de preto, aquele escuro.
- O que tá de pé? – dos dois este é o que está visivelmente mais tocado pelo álcool e olha o colega de lado –
- O que tá de pé morreu?
- Hum! Aquele ali dispara, aquele cai e morre e depois acaba.
- Eh! – exclama. De novo observa a cena e voltando-se para o amigo, o efeito do álcool alongando-lhe os tempos –
- … Mas ele… o que tá de pé… não morreu?... – volta ao seu olhar enviesado para o colega, desequilibra-se, quase cai -
- Pois, mas agora dessa vez ele não morreu, acho que não disparou bem, o outro, aquele claro! Sim, alguém falhou e não disparou.
- Mas morre? Hoje?
- Se já morreu! Da última vez morreu!! Parece que não ouves!! Não percebes português?? Estes são portugueses, tu parece que não percebes português!– o outro olha tudo à sua volta, como se confirmasse que outros ouvem o discurso do colega, não há reacções, todos olham a cena, ele conforma-se -
- Ok, mas fez o quê ele?
- Sei lá! É agora preciso fazer alguma coisa? Para morrer??

Na rua um homem rouba o espelho de um dos carros da equipa, há apoio policial que logo intervém:
- Onde está o espelho? – o polícia faz-lhe uma rasteira e ele cai de cara no chão, o homem não parece surpreendido com o tratamento -
- Está aqui perto..
- Perto aonde? Devolve o espelho!!!
- Não tenho boss, está com manos, aqui perto.
- Que manos? Diz!
- Eu não digo nada… eu não sei, tá com os manos.
- Hás-de ficar aqui, nem que fiques aqui três horas de tempo! E vais para a esquadra, arreio-te! Diz!
- Eu não digo nada. – o polícia algema-o, deita-o de novo no chão, rosto para baixo, o homem não parece surpreendido.

Montamos a luz na varanda da pensão da esquina. Na subida para o primeiro andar encontro um casal: ele, jovem, bem vestido, ela ainda quase menina, os pés a tremer nos saltos finos – o olhar dele vai baixo, no guardar do troco do pagar do quarto. Quando levanta os olhos esbarra nos meus, eu sigo de fugida, e a ele as cervejas já lhe fazem alongar muito os tempos. O olhar segue-me e o acompanhar do movimento do curvar da escada que subo desequilibra-o, escorregam os pés e cai sentado nos degraus. Olha-me, olha a sua acompanhante mas os olhares não se encontram – nela, a impaciência olha no relógio o passar dos minutos do primeiro encontro da noite. Na rua está muito frio ele espreita à porta, seguindo-me o rasto, mas já não sai, volta-se para a negra dos lábios doces e pergunta apenas:
- Ela também é de cá?

Filmamos na Rua Araújo até às 5horas e quando passo para casa, no final, grita a Jeje:
- Ei, vizinha, amanhã? Voltas amanhã para trabalhar?
Na passagem duas ou três pessoas voltam a cabeça, eu só respondo:
- Tata!


publicado no jornal @verdade

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Jobando na Rua Araújo




Ela grita bem alto, na rua Araújo - ali no cruzamento com a Rua da Mesquita - todos ouvem, todos olham.
Os estrangeiros? Nem um olhar - entre o pudor de observar o corpo bem despido e bonito e o forçado profissionalismo fingem que ignoram - todos repentinamente surdos, cegos, sem desejos.
- Assim estão aqui, não é? A incomodar meu trabalho! – depois em tom baixo, para um dos curiosos que observam - E eu hoje até estava de folga mas foi esse meu amigo da Mcel que me disse que vocês vinham aqui na minha esquina, e eu vim logo! Para, quem sabe se precisam de ajuda! Porque esses mulungos, nem companhia, não tem! E tu, queres companhia?
Os estrangeiros são nervosos, e gritam, toda a gente sabe, o mulungo grita:
- Ei aqui estamos a trabalhar, quando disser silêncio quero silêncio, ok?
- Nada! Porque não vão apanhar esquina noutro lado? Eu mesmo não quero ninguém aqui com constipação nos sovacos! Mas aqui minha terra, eu não calo! Se estão no meu sitio! É para eu trabalhar aonde afinal?
O estrangeiro não reage e continua a trabalhar. É preciso continuar a trabalhar, como se ignorar o real dos lugares que nos incomodam, que não entendemos, que chocam com o nosso viver… como se esse ignorar o enfraquecesse.
- Ok, atenção vamos começar… - ela continua o grito -
- Aqui não há constipação nos sovacos!! Esta esquina é de qualidade!! – eu decido esquecer o grupo onde supostamente pertenço - poucas coisas me dão mais prazer - e sigo nos caminhos difíceis e ambiciosos da comunicação -
- Mana, como estás? Tudo bem? - ela é apanhada de surpresa, compõe os cabelos, desce a mão que mantinha na anca, quase na linha da mini mini-saia - desde que começara a falar, e diz com pompa, as palavras bem articuladas nos lábios pintados de laranja –
- E eu estou bem, não sei do seu lado!
- Mana, qual é teu nome?
- Jeje, obrigada! – mudando repentinamente o tom, o olhar, o gesto.
Os estrangeiros continuam a utopia do ocidente, desde que continue o trabalho tudo vai bem -
- Silêncio! – não se faz silêncio mas o silêncio foi pedido e seguimos o trabalho, e isso já é alguma coisa -
- Som? – pede-se que o som começa e ser registado e a verdade é que merece ser registado, embora os micros apontem para a cena…
- Está a andar…
- Eu aqui não quero ninguém encostado sem pagar!! E eu quero trabalhar e não quero minha cara aí nas máquinas, que eu, hi! Mesmo ao Faces não vou, que não gosto! E eu…
- OK, CORTA!!
- Jeje?
- Sim mana!
- Agora ali os whites estão a trabalhar e se eu pedir para calar tu calas, né?
- Ok mana, não tem problema, obrigada!
- Atenção, Som?
- Está a andar…
- Porque se eu na vossa terra for…
- Jeje?
- Sim, obrigada?
- Miela-te lá! Que eu também estou a jobar aqui!
- OK!

Filmamos na Rua Araújo até às 3horas e quando passo para casa, no final, grita a Jeje:
- Ei, vizinha, amanhã? Voltas amanhã para trabalhar?
Na passagem duas ou três pessoas voltam a cabeça, eu só respondo:
- Tata!
publicado no jornal @verdade

Ntsongwàna Maputo


São carregadas às costas, bem perto do corpo da mãe.
Andam em grupos fardados de verde e branco, a caminho da escola.
Caminham descalças, brincam com inventos de brinquedos tão reais como pneus, paus, arames…

Ao lado da minha porta vêem dar-me os bons dias:
- Titia, quando vais nos levar ao teatro?
- Mas pequenote, essa peça não é para crianças… - ele cresce na ponta dos pés
- Mas eu já tenho 10 anos!
- Um dia levo-te.
- Ah, estás a mafiar!

Aqui, em África as crianças são muito importantes, dizem-me. São a riqueza das famílias, as meninas significam um dote, os meninos trazem para os pais uma outra filha, a nora.
Nalgumas tradições as crianças são educadas pelos tios e não pelos pais, para fortalecer a unidade familiar, noutras logo que a menina atinge os cinco anos de idade é entregue à avó para tratar dela na velhice.

Muitas vezes neste continente se espantam por eu não ter filhos, e saem as perguntas,
- Mas senhora não pode? – dizem com tristeza;
- Não quer? – o desdém estampado no rosto.
Diz um provérbio africano “Se a mulher não pode ter filhos, deixa-a carregar nas costas uma pedra.”
E sinto cada vez mais o desperdício.
Os deuses castigam, bem sei, quando recusamos as coisas boas.

E tantas vezes deixamos a riqueza pelas ruas…
Maputo tem crianças nas ruas, a pedir, a mendigar.
Não sabemos todos, de cor, as esquinas, os degraus, os semáforos onde estão? Não conhecemos tão bem os rostos, a cor dos andrajos, a frase com que nos abordam, a maneira como dançam o som do chapa que passa, ou como se batem pela moeda que receberam. As de olhar triste e assustado, as de olhos sabidos e atrevidos. As que falam, as que só estendem a mão. As que correm para o carro. As que ficam a olhar mais de longe. As que tentam vender coisas, guardar o carro, carregar os sacos. As que podem roubar e matar. As que dormem enroladas numa camisola e as que se aninham juntas, em famílias improvisadas. As que jogam à bola com pedaços de papel. As que são respeitosas e as que são rudes.
Não sentimos todos a hesitação da esmola, o que dar, se dar. Moeda, comida, mais ou menos meticais para o que vive na rua. Todos sabemos, todos conhecemos. Então?

Saio do restaurante, a noite está fria. Uma criança descalça passa, veste apenas uma t-shirt, demasiado grande para o seu tamanho. Senta-se no chão, encolhe as pernas e estica a t-shirt até a tapar dos pés à cabeça, deita-se de lado, em posição fetal, e prepara-se para dormir enrolada no seu casulo de algodão, nas costas ainda se vê desenhada na cor gasta o logótipo da BP.

No caminho para o bairro da Liberdade passo o caminho-de-ferro, todos os dias aproximadamente dez crianças trabalham aqui, vendem rolos de papel higiénico das oito da manhã às dezoito horas. Estão de pé, carregadas com os enormes sacos,
- Cinco! Cinco! Cinco! Cinco! - gritam o seu produto para vender, perseguem os carros, recebem a moeda… todos os dias.

Na rotunda de entrada em Maputo, naquela água parada lavam as pernas algumas crianças, despem as calças e esfregam no alcatrão os pés. Um carro passa, salpica-os, de novo se baixam a apanhar a água, com cuidado, lavam as pernas.

Nenhuma criança devia viver assim.


publicado no jornal @verdade

Meu filho é minha mãe


Senhora?... senhora tou pidir falar, posso falar?
Senhora, meu filho, aquele alto, aquele Calado caiu, partiu braço! Eu zanguei, zanguei com meu marido, estou zangado com aquele aí porque fez meu filho subir lllllá para mudar a chapa - porque estamos a aumentar casa e para carpinteiro arranjar, arranjar lá era preciso tirar chapa - então ele mandou subir meu filho, eu zanguei, muuuiiito, muuuiito, porque mandou meu filho, porque não foi ele? Pessoas grande! Não podia ir??
Meu filho caiu agora, o MEU filho. A senhora não comprou cama para receber sua mamã? Então, meu filho é que vai cuidar de mim, e meu marido não cuidou ele, se ele é pessoa grande crescida devia saber para cuidar, não é?
Foi de propósito, fez cair o meu filho. Não foi azar aquilo aí. Eu sofri muito para nascer essa miúdo. Não sou eu que lhe nasci? Sou eu, não é ele! Ele só lança lá aquilo, só, não lhe custa nada. Até vê os doces, com isso aí, ele lhe custa fazer bebé? Não custa nada. Eu sofri, eu é que lhe carreguei na barriga e para ele nascer vi muitas coisas, foi difícil esse bebé aí, vi muitas coisas senhora, aqui, aqui – olha o céu – e vi cova perto de mim, assim para ele me nascer. E papai faz isso? Não está certo, estou zangada, zangada, MUITO, MUITO!
Eu zanguei muito, muito, até lá enfermeira perguntou de onde eu era, que zangava e eu disse manhambane, e ela disse “Hiiii, manhambane? Esses aí como zangam! Até marido, não consegue nada! zanga até marido!”
Eu chorei muito, muito, muito lá no hospital, e enfermeira até disse isso aqui não é azar, de cortar perna ou rebentar braço, nada, isso aqui é azar pequeno, não deve chorar. Mas eu chorei muito, muito, ele partiu aqui – aponta para o pulso - e vai médico operar e ver para pôr ferros e coisa e coisa, tá a ver?
Mas zanguei!
Porque homens não entende. Se nós pensa que homens é nosso amigo não é verdade. Aquele meu marido ali só gosta disso – aponta entre as pernas – só isso que ele quer só! Aquele meu marido é maluco, homens só gostam de nós para estar assim, assim a abraçar, beijinhos e tudo, para me ajudar na minha vida e ser amigo, aquele ali? Nada! Eu esta semana nem falei bem com ele, porque lhe encontrei a namorar a outras mulheres, sou eu que trabalho senhora, e se ele tem dinheiro logo vai namorar, só quer mulheres, só mulheres esse aí! É maluca. É meu amigo só à noite, só! Homem só quer tuas pernas, não é assim, senhora? Então, homem não se pode confiar para ajudar e assim, temos nós de confiar umas nas outras. Eu lhe falo assim, senhora, não leve a mal, eu lhe falo como vou na minha casa e você pode me falar como vai. Senhora eu não fui na escola, quando eu era pequena a minha mamãe morreu, e meu pai tomou outra mulher, lá. Essa outra mulher não foi comigo bem, e meu pai eu acho que estava maluca da cabeças, porque esses homens é maluca mesmo, sabe? Não sabe cuidar crianças, e aquela senhora não me apanhou bem, nem soube lá me meter na escola nem nada, para eu aprender. Não sei nada, senhora. Só o meu nome que eu sei fazer ali, só isso foi D. Paula que me ensinou a escrever lá - Leontina.
E mesmo ela me disse e ensinou de cuidar filhos. Nós temos de cuidar os filhos, não é senhora? Quando estão na barriga e lá no hospital o médico diz, está aqui o filho, é preciso lhe cuidar, cuidar bem. Porque senhora, esse meu filho é minha mãe!


publicado no jornal @verdade

Moçambique in love


Desde que cheguei que são muitos, e só vão aumentando! E é tão constante que acho digno de nota, e alguma coisa deve ser feita!
Na rua estaciono o carro, os rapazes comentam:
- Esta senhora!!.. Hi! Marido não devia deixar andar sozinha – e quando saio,
- Senhora, posso te cantar uma letra?
- És músico?
- Estou a pensar ser, mas quero te cantar esta minha letra, se gostares eu gravo. Porque… estou apaixonado por ti.
Na disco ele observa, de longe, exibe os passos da moda, depois aproxima-se para convidar a uma passada e na segunda dança – que não recuso, dançar com um moçambicano é sempre um prazer - revela:
- Sabes? Estou apaixonado por ti.
E de repente todos parecem Hermínio nas “declarações de um apaixonado”
Tu bem sabes que eu sou louco por ti
Que eu só vivo para te amar
E que eu não posso te trocar por nada
Que és a minha doce amada
Minha bebé
Que és o melhor que me aconteceu
E brilhas mais que a estrela lá no céu
E és para mim como uma jóia rara
Tua beleza miúda é tão cara

Eu não entendo! Porque mentem tanto os homens?
Num dia em que a insistência era maior ainda apresentei o amigo que me acompanhava como meu namorado, mas isso não ajudou nada, o rapaz seguiu em frente:
- Muito prazer, posso falar com ela, não posso? - E passado algum tempo de papo:
- Posso ficar com o teu contacto?
- Ei, ele não deixa. – digo eu, apontando para o meu falso namorado.
- Mas ele não está a ouvir, dá-me lá, eu prometo que não ligo para ti, só mando sms. – em jogo de fiel e pudica denuncio a situação ao falso namorado, ele avança e representa:
- Olha lá, então queres o número da minha namorada? Gostavas que eu pedisse o da tua?
- Não tem problema, é Lígia, 82…
Mas logo que a relação se estabelece o avanço para o “estás fora de casa”, é bem rápido
Às vezes me pergunto ai o que se passa
Será que a minha menina tem outro namorado
E quando toco no assunto tu mudas
Inventas mil estórias e me acusas
De coisas que não fiz
Coisas que nem eu sei


E depois é senso comum que o homem não suporta tudo – embora para a mim a verdade é que não suporta nada – mas mesmo quando levantam a mão todos sabemos as atenuantes dos crimes passionais e quando as mais corajosas reagem em fuga o tema “arrependimento” ainda é mais rápido a aparecer!
Ontem bebé sonhei contigo
Quando acordei não estavas aqui
Como aguentar tanto castigo
Se a nossa casa é triste sem ti
E o nosso quarto está tão vazio
Na nossa cama faz tanto frio
Sinto o coração a apertar a doer
Porque sem ti não sei viver
Eu sou um homem sou humano eu não sou perfeito
Baby perdoa esse meu jeito
Não faz assim

E aqui a mulher tudo perdoa, tudo negoceia, tudo tem volta em nome do “amor”. Porque no fundo a traição, a poligamia, tudo é normal, masculino, tradicional.
Saio com um amigo, que me apresenta outro que por sua vez me encontra sozinha e me pede o contacto, e que segue para me convidar para sair. E o “brada” perdoará?
Saio com um amigo, trocamos mensagens, passados dois dias recebo sms do telefone dele: “não manda mas msg para mim”. Ainda brinco:
- Isso é um pedido ou uma queixa?
Mas que não, não foi ele, ok… então foi a namorada não?
- Não, não tenho namorada, ouve, eu sei quem foi mas não te preocupes, não é nada.
E depois de dois encontros já me pedem em casamento e já ligam a qualquer hora disparando a pergunta:
- Tás aonde?
Mas se é que estavas a jantar
Porquê quando liguei não me atendeste
À sms não me respondeste!

O problema é que aqui… os homens apaixonam-se com muita facilidade! As palavras amor, paixão, casamento e compromisso saem-lhes da boca a velocidade estonteante.
De onde vem o amor? Eu não sei mas ele existe, não?
Mas assim? Não vai aparecer!


publicado no jornal @verdade

O pirata das batatas fritas


Em Maputo a oferta de cinema não é muita.
Há cada vez mais iniciativas que dinamizam a área como o Dokanema, o Komba kanema e a 1ª Mostra de Cinema CPLP, inaugurada esta 5ªfeira e que sob o lema “Uma comunidade, diferentes olhares” nos trás a exibição de 60 filmes da Comunidade de Países de Língua Portuguesa , dos quais 20 são moçambicanos.

Sim, começam a aparecer projectos que dinamizam a área mas é preciso muito mais porque a oferta regular, na cidade, ainda se resume à produção de Hollywood, aos clássicos do karaté indiano e uma ou duas exibições pontuais de ciclos no Centro Cultural Franco Moçambicano, no Scala, no Teatro Avenida…

Sim, a oferta não é muita e no entanto na rua, nos sacos enormes que carregam, os “piratas” vendem de tudo! E, sei que não me fica bem, mesmo nada bem, mas não censuro os que compram estas piratarias.
Eu própria incluo-me nesse grupo.
Sim, sei que é crime piratear, mas a verdade é que a maior parte das pessoas que não compra estas cópias de DVD não é pele ideologia mas porque são de má qualidade.
Pois aqui deixo a dica, encontrar o dealer certo. É preciso procurar um dos bons e depois criar aquele nível de confiança mútua que nos permite ir ao barbeiro, ao sapateiro ou ao café habitual e não ter sempre de explicar de início o que queremos, como queremos – o que eu detesto a pressão que sinto de casa vez que experimento cabeleireiro novo! – e quanto tempo vai demorar e que preço vai custar.
Eu com os DVD tenho os meus dealer, e esses trazem-me as cópias com a melhor qualidade, e as mais raras.
Quando os conheci tive de passar por todo aquele penoso processo de escolher entre as mil comédias românticas, as centenas de filmes de luta e as dezenas de acção aqueles filmes que quero mesmo ver, e que estão, invariavelmente, no fundo do saco.
Assim vi trabalhos de Wody Allen, Tim Burton e Irmãos Coen, tudo no conforto do meu lar e muitas vezes no dia da estreia!
Sim, eu sei que é pirataria, não se faz, então e os direitos de autor e tudo isso?
Sim, eu sei que sou culpada.
E pago por isso. Tudo se paga nesta vida! E confesso que muitas vezes o visionamento é feito em agonia. Porque os dealer são fiéis, mas quando procuro o último filme de Quentin Tarantino e só há uma cópia, malgrado o trato é essa mesma que me é vendida com a mesma enfática promessa:
- Senhora, é boa cópia essa, confia, é de qualidade, se não for boa pode trocar.
Ora é exactamente esta proposta que me faz desconfiar… mas vou para casa, na cama ajeito as almofadas, levo o chá e às vezes os bolinhos e estou preparada para ver um filme, daqueles dignos desse nome, o da sétima arte!
A cópia é ilegível.

Algumas das cópias são mesmo feitas do filme do videoclube, com os créditos e o "proibido copiar" e tudo, partes que eu passo rapidamente para a frente, corada.
Há os “for awards consideration only” em que durante toda a cópia a imagem fica a preto e branco 50 vezes e a legenda aparece, lembrando-nos do fim para o qual foi copiado o filme… É bem claro que esta mensagem não é para mim mas mesmo a ter de pensar por um segundo num prémio a atribuir faz-me distrair um pouco… e porque fica a preto e branco a imagem?
São mistérios insondáveis os caminhos da pirataria.
E, de pala no olho, continuo a tentar o visionamento.
Depois, não sei porquê mas quando aparecem os obstáculos a mente aceita o jogo e aguenta tudo!
Já percebemos até quando vai aparecer a risca no meio, a chuva em metade da imagem ou a mudança de cor, o delay do som ou das legendas. Tudo isto pode animar um verdadeiro momento de pirataria!
Há também os piratas que vão para o cinema de câmara na mão, por mim tudo bem, eu por esta altura já não sou esquisita, mas quando uns tipos chegam atrasados e eu em vez de ver o filme vejo uns casacos a passar, ou uma cabeça mais alta marca indelevelmente a imagem, o momento é mais difícil.
E uma vez até outro filme, completamente diferente, apareceu no meio da fita! É verdade que era com o mesmo actor no papel de protagonista, mas não me parece razão suficiente…
Quando a tradução é tão má que ouvimos o “piece of cake” ( no sentido de “muito fácil”) traduzido por “fatia de bolo” e “let’s make a toast” ( “vamos fazer um brinde”) por “vamos fazer uma tosta” desconfio que quem esteve atento ao texto não teve acesso às imagens…
E em todas as cenas o texto é tão vago e tão repetitivo que parece sempre o de um filme pornográfico…

Mas o pior é mesmo quando o pirata que faz a filmagem leva batatas fritas e só se ouve o seu mastigar onde se deveria ouvir a voz sensual da Scarlet Johanson aqui eu já me importo um bocado!

E a cena faz-me repensar o discurso dos direitos de autor e tudo o resto.
Na quinta-feira passei pelo Xénon e tenho comigo a programação da mostra CPLP e pelo menos por algum tempo prometo: descanso do pirata, e das batatas fritas!


publicado no jornal @verdade