sexta-feira, 30 de abril de 2010

Deus vai organizar

- Senhora veio de jipe lá de Portugal? Ysh! Senhora! É muito longe! Todo esse caminho? Ysh, senhora deve conhecer muitas províncias!
Viajei, viajo.
Já sabia, passo a passo vou apenas confirmando o prazer que me dá o mudar de lugar. E até agora avanço sempre, nas curvas caprichosas da estrada e sob a orientação misteriosa da estrela.
Pelo caminho conheci Moçambique. Daqui saí, viajei. E voltei.
Volto para o desafio exótico, misturado de influências e inchado de cosmopolitismo, para a doçura húmida de Maputo.
Volto, ainda não acabou meu tempo aqui. Volto porque me inspira, inspiro-me nas gentes, nas filosofias da vida.
Sento-me à sombra da bananeira, e escrevo. Ela fica curiosa:
- Senhora está a fazer?
- Eu? Estou a escrever.
- Hum… (espreita por cima do meu ombro) eu não sei escrever, eu nasci no mato, láaaaaaaaaaaaaaaaa (alonga o som como a percorrer a imaginária distância) em Inhambane, minha mãe morreu muito cedo, papai casou mas aquela ali não me gostou ou não sei, então eu nem na escola não fui, nem assinar não sei… senhora pode me ensinar?
E enquanto arruma as minhas roupas:
- Senhora? Posso levar esse vestido?
- Bom… esse vestido...
- Sim, mas senhora não está a usar, eu haveria de usar.
No dia seguinte:
- Senhora, eu estou de malária.
- Então não tem problema, pode ficar a descansar.
- Nada senhora, eu hei-de vir descansar lá na tua casa.
- Mas pode ficar com sua família.
- Nada, hei-de ficar aqui na tua casa, lá na minha casa tem muita água para cartar, aqui eu fico bem, bem mesmo. Crianças lá hão-de se organizar.
E como já é hábito de quinze em quinze dias há cerimónia familiar para organizar:
- Senhora eu estou sem dinheiro de farinha, de arroz, nem folha de chá não tenho. Amanhã tem aniversário de meu filhos mais novo e eu vou receber visitas, mesmo assim, sem nada, nem biscoito não fiz…
- Pois…
- Bom, deus há-de organizar.
- Pois…
Hoje chega atrasada, aproxima-se de mansinho, na mão um copo de água de coco.
- Hum… Senhora como está?
- Eu estou bem obrigada e na sua casa, tudo bem?
- Sim, tudo bem, nada mal. Senhora, senhora não tem filhos?
- Não.
- Nunca teve, na sua vida, toda a sua vida nunca encheu barriga?
- Nunca.
- Ysh… senhora, jura?
- Sim.
- Então como faz, senhora usa camisinha?
- Eu…
- Senhora, sabe que aqui em Moçambique nós sabemos muitas coisas… senhora sabe porquê nunca engravidou?
- Bom, porque…
- Nada, senhora não sabe. Essas coisas de camisinhas e comprimidos, isso não é nada. Sangues é coisa forte, nada disso são coisas de importância. Senhora, vamos fazer assim, eu sei das coisas, eu sou sua mamã em África! Afinal! Então eu vou plantar, plantar e depois apanhar e pilar, pilar e depois ferver, ferver! Senhora toma, nem há-de terminar duas panela e barriga há-de crescer, é assim senhora, não acredita? Eu sei dessas coisas, pessoas vêem de longe, senhoras mesmo da cidade, com esses problemas, e eu faço. Funciona sempre. Isso tudo aí que está fechado vai abrir.
- Sim, mas…
Ela já nem ouve, vai fazer os seus trabalho e na saída:
- Senhora, tou pidir sair, posso?
- Sim, até manhã, obrigada.
- Senhora, senhora tem fé? E… mas não vai na igreja, né? Pois.. então isso que eu disse de deus organizar senhora…
- Sim?
- Não acredita não é? Por isso… senhora não quer ajudar deus a organizar aquilo ali de meu dinheiro?

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Time for Africa


Sábado de manhã procuro pneus para lama, estou cansada de ficar atolada pelas estradas de terra dos países das chuvas. Encontro Salim Hassan que ao meu pedido responde apenas:
- Why? The rainy season is almost over. Have a cup of tea, don’t worry about it now.
Estou em casa de um amigo ele pede ovos para o pequeno-almoço:
- Patrão, ovo não tem, peço dinheiro para comprar – sai para o mercado, regressa, prepara a refeição, o boss come. No dia seguinte:
- Ovos mexidos e…
- Patrão, ovo não tem.
- Mas ontem foste ao Mercado!
- Sim, e comprei ovos para ontem, não sabia que hoje precisava.
Folha de chá só se compra quando a visita já entrou em casa e já sentou.
- Tem vinho?
- Acabou.
- Como acabou? Ontem te perguntei se tinha.
- E tinha. Ontem tinha. Hoje é que não.
- Não sai água. Não disseste que havia?
- Sim, havia.
- Mas tinha pouca?
- Não sei, patrão não perguntou se tinha pouca, perguntou se tinha. Ontem no tanque tinha.
Casa está quase a cair, homem dorme na entrada da porta. Estamos na estação das chuvas, chove todos os dias, todos sabemos. Basta uma chuvada mais forte para destruir a casa. O homem descansa, dorme, ergue a mão e saúda-me: “mambo!”
Para quê preocupar-me com algo que ainda não aconteceu e pode nem acontecer?
Temos tempo. Não há pressa.
Pode parecer desleixo ou preguiça mas na verdade não ignoremos que é de facto imprevisível o rumo das coisas. Que não depende de nós o caminho, mesmo que decidamos em consciência que placas seguir, que paragens fazer.
Para os crentes a ideia de que Deus, uma força superior, há-de organizar a nossa vida e nela todas as pequenas questões, é talvez tranquilizadora. E a verdade é que todos ou quase todos nós nos apoiamos nessa ideia. Na ideia de que depende da nossa vontade e dos que nos rodeiam, com quem vivemos, para quem trabalhamos… o sucesso ou insucesso das nossas vidas.
Mas não é verdade, catástrofes naturais a comprová-lo, acasos diários e coincidências a lembrá-lo.
Nas terras etíopes e nos países Swahili existe uma particular aproximação à questão das horas, com o dia começamos a contar, logo que nasce o sol – hora um; depois que se põe – termina a contagem. Não existe hora no escuro. Nos países sem electricidade faz mais sentido do que pode parecer.
Aqui muitas vezes ouvimos a expressão “aquela hora das xx”, e anuncia o vago suficiente que encerra qualquer determinação de horário. Será por aquela hora, dentro daqueles 60minutos, mais coisa, menos coisa.
«I ask for a moment of undulgency… The Works that I have in hand I will finish them after.»
«Não te irrites hoje; Não te preocupes hoje; Agradece hoje; Trabalha com verdade hoje; Ama todos os seres vivos hoje…»
E não é disso que falam as filosofias zen tão antigas e tão populares no momento? As artes da meditação, da interiorização do caminho, do agora, do eu, do interior, do respeito pelos caminhos sabedores da natureza…
Então, basta olhar para África, o segredo esta aqui.

domingo, 18 de abril de 2010

African time

Em muitos lugares de África a relação com o tempo é… particular. Todos sabemos e todos dizemos: “o tempo é o que fazemos dele”. Sim, mas poucos o sentimos, a verdade é que para a maioria o tempo é ditador, no relógio, no despertador, na rádio, no djob, em casa…
Estou em África, sentada à porta do gabinete do oficial Swahili.
Está calor, estamos na estacão das chuvas curtas, chove e faz sol, todos os dias, várias vezes.
Eu estou aqui, sentada neste banco de pau, e espero, à chuva e ao sol. Molho-me e seco-me. Espero.
Para mim o oficial está atrasado, muito. Mas isso só existe na minha cabeça.
Está atrasado duas horas e para mim isto não se faz, não é profissional, é falta de respeito, etc, etc, etc. Mas isso é para mim, alheia ainda aos valores do momento.
Passaram uma hora, duas horas, quase três horas de tempo… horas “de tempo”… hum… eu pergunto-me de que poderiam ser feitas as horas senão de tempo… eu impaciento-me. Não consigo fazer nada. Porquê? Porque espero.
Finalmente ele aparece, vestido na sua túnica africana, eu levanto-me de imediato, estou furiosa e preparo-me para o descarregar no culpado.
Mas esta não é a verdade, agora sei, o culpado não é ele, sou eu.
Ele pára na entrada e conversa com o guarda, pergunta sobre o dia, a chuva, a família, as frutas da época. Não me olha, encosta-se por um momento na parede, descalça os sapatos, volta a calçar-se, avança, eu avanço de mão esticada, ele não me cumprimenta:
- Já viu estas flores aqui, como estão bonitas? – esta apanha-me de surpresa,
- … Flores?
- Sim, estas flores são muito raras e só aparecem nesta altura do ano… - a verdade é que nem oiço,
- Sim. Senhor Makwakwa eu estou aqui porque precisávamos de falar sobre…
- Hum… é estranho normalmente nestes dias eu gosto de ficar a olhá-las…
- Sim, ok. Bom, a situação é que… - não me deixa continuar,
- Como esteve aqui todo este tempo pensei que tivesse aproveitado para contemplar – e enquanto abre a porta do gabinete completa – é muito importante o tempo para a contemplação sabe?
Eu sigo-o para dentro do escritório, ele senta-se atrás da secretária, entra uma mulher com uma criança pequena que ele toma no colo, fala com ela em língua local que eu não conheço, e só depois olha para mim:
- Sabe, Dona?...
- Joana.
- Mullher de…?
- Não sou casada.
- Mãe de…?
- Não tenho filhos.
- Lamento muito. Mas Ok… Joana. Então, sabe que… - acende uma cigarrilha – eu gosto de contar uma piada engraçada, é só uma piada percebe? Gosta de piadas?
- Sim, mas eu vim aqui…
- Quando deus criou o homem branco deu-lhe um relógio, quando criou o homem negro deu-lhe tempo…

sexta-feira, 9 de abril de 2010

homem que é homem III


- Ei, Joana, tens de fazer um xikwembo sobre os homens que vão ao salão! Na sexta-feira está cheio deles! Mesmo lá onde que eu vou, a sério! Vem lá ver um dia!
No hemisfério Norte é uma luta espalhar um creme na pele, muitas vezes ressêca, de um homem! Mas aqui em África não existe aquilo que se chamou de metro sexuais - por declarado desconforto para com os hábitos aparentemente afeminados de homens viris, de masculinidade comprovada (como futebolistas com mulheres esculturais e rebanhos de mais que dois filhos) - nada, aqui homem que é homem vai ao salão, arranja as unhas, hidrata a pele…
Viajo para Nampula durante um final de semana e comigo viaja um moçambicano preocupado:
- Ei, em Nampula onde vou fazer as unhas? Ontem nem tive tempo puxa…
E todo o homem que é homem que visita a minha casa passa pelo toucador e pergunta:
- Isto é creme? – e mesmo antes da minha resposta recebo um imediato:
- Ya, é de baunilha, tou a sentir, maningue nice!
Mas homem que é homem é homofóbico. Não quer ouvir falar de homossexualidade nem em piada! Que não é natural, que não é lugar para essas práticas!
Fala mesmo como se não coubesse a cada um a decisão sobre o que fazer com suas partes. E na sua falta de argumentos ainda avança:
- Ok, podem fazer o que quiserem mas lá na casa deles, à minha frente não!
Homem que é homem fala assim enquanto perfuma de óleo de jasmin o cabelo.
Porque homem que é homem sente que sensibilidade é motivo de vergonha.
Homem que é homem não sente.
Ou pelo menos não mostra.
Homem que é homem não ama, está à espera do segundo filho mas nem tem tempo para o primeiro.
Homem que é homem não chora, não partilha, não dá nem recebe
Talvez nalguns casos ele entenda sua dama, seja carinhoso, se lembre dos aniversários e até celebre com flores o dia dos namorados mas hoje… hoje é sexta-feira e ele de mansinho vai introduzindo o assunto:
- Hi, meu brada ligou-me… ysh já vai insistir para eu sair… - Eu para mim não entendo, não é a vontade de sair, nem sequer o facto de sair com os bradas significar não sair comigo, até a isso já me habituei, mas as reticências, para que servem? De que vale a justificação de que são os bradas que estão a insistir, de que vai demorar uma, ou duas horas de tempo?
- Eu te pedi? Não te pedi. Não me importa o tempo que ficas fora nem na verdade me importa o que fazes com esse teu tempo. - Pois, não soa bem não é? Damo não gosta do desinteresse que parece que esta formulação encerra e por isso eu não o disse, mas pensei. Vejamos, eu não estou a falar de adolescentes, que facilmente se influenciam e se deixam influenciar pelos amigos, nada, falo de homens feitos, que sabem muito bem tomar decisões, no trabalho, em casa, e de certeza entre bradas. Mas não fica bem…
Homem sai com os bradas. Não com a dama.
Homem não come xiquento, come sempre da panela a comida acabada de fazer.
Homem quando viaja não faz a mala, em casa não fala à empregada, não sabe das ementas, das compras de rancho mensais ou das arrumações.
Porque para a maioria dos homens, isso é coisa de mulher.
Mulher serve para lhe organizar a casa e a vida, para lhe dar filhos, para casar, para apresentar à família…
Para agarrar tem todas as outras. Para tchilar tem os bradas. Para pensar, discutir elaborar (os que se entregam a essas práticas) tem os colegas de trabalho…
No fundo ao homem que é homem não lhe importa o que eu sinto e muito menos o que eu penso ou quais são as minhas considerações sobre política, sociedade, tecnologias ou desporto. Esses não são assunto de mulher e quanto às temáticas que consideram femininas: saúde, espiritualidade, família, moda, gastronomia… essas não lhes interessam nem um pouco. E a mim a questão surge-me de rompante – interessar-se-ão mesmo os homens pelas mulheres?
Eu tenho as minhas dúvidas.
A piada surge, mas é mais digna de lamento que de riso:
“- O senhor casou com a sua mulher por amor ou por interesse?
– Bom, deve ter sido por amor porque ela não me interessa para nada.”
Isso é ser homem?
Um leitor comenta de si para mim que não é por mal, ao homem que é homem falta crescer. Pois sim, nós mulheres aguardamos.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

homem que é homem II


Sexta-feira dia do homem, damo sai.
É sexta-feira e ela também sai, para tchilar com as bradas.
São namorados, mas na sexta-feira saem em caminhos diferentes, dama com damas e damo com damos. Porque homem que é homem em Moçambique não sai com a sua dama.
Está calor, e o calor dilata os corpos. Damo bebe Laurentina preta e dá papo às damas que passam.
No outro lado da cidade dama saiu para a disco, é dia do homem, por isso há muitos homens lá na night. Ela dança passadas moçambicanas, kizombas angolanas, mornas cabo-verdianas e lambadas brasileiras…. Dança. Bebe shots de sambuca pagos pelo indiano de camisete com escritas douradas, bebe champanhe oferecido pelo sul-africano de chinelos e faz convites insuspeitos ao mulato de jeans colantes. Dança. Olha, se movimenta e dança.
Está calor. Dama tem calor na disco. Damo tem calor lá nas barracas.
Damo pensa na dama, mas com os bradas não comenta. Homem que é homem, não pensa na dama, pensa nas damas.
Dama tchila, bate papo, retoca o lips e sobe um pouco mais a sainha. Pensa no seu damo, mas não comenta, bradas estão a enjoyar a night e ela não quer ser matreca.
Damo e bradas saem das barracas, damo quer estar com dama mas não quer dizer, então liga para perguntar:
- Tás aonde? - dama já tá jazz, vai ao banheiro e cheka celular, damo ligou, dama não tem crédito, faz please call me. Dama sente a falta dele, no fundo tem saudade, quer estar junto, mas não diz, confusiona. Damo também quer e por isso zanga:
- Porquê não atendeste? Vou te apanhar aí onde estás! – dama para disfarçar faita:
- Estás-me a controlar porquê afinal? Você não estás com teus bradas? Então, eu estou aqui com minhas amigas.
- Vou-te apanhar, eu!
- Ok, vem. – brada desliga o celular e para os manos disfarça.
- Ysh, dama tá a fazer confusão, pergunta onde estou, não sei quê, quê, vou-lhe apanhar lá na disco, deixo-lhe em casa e hei-de voltar. – bradas sabem o que ele sente, no fundo querem fazer o mesmo, mas disfarçam:
- Tá nice, estamos juntos, mano, falamos, vamos apanhar uma brisa, depois surges, né?
- Ya, só deixar a dama, sabes que aquela ali é confusa?
Damo apanha dama na disco, manda bip, ela demora, manda mensagem, ela aparece, entra no carro, está calor e o calor dilata os corpos, beijam-se, mas moçambicano não beija namorada assim, na rua. Manos podem ver, não fica bem. Porque homem que é homem não beija, não ama.
Eu não entendo mas homem que é homem entende.
E dama também tem de entender, é assim. Pelo menos quando os amigos estão por perto.