sábado, 31 de julho de 2010

Felicidade de dono

Passeio na marginal de maputo, à minha frente um carro avança muito lentamente. Lá dentro um homem dirige, ao lado vai sentada uma mulher. Comenta o meu acompanhante:
- Aquele ali, tá a passear mulher de dono!
- Como sabes? Tu também és confuso! Pode ser mulher dele.
- Nada, tua mulher não passeias assim! Assim a demorar viagem? Parece a abrandar para ver ondas, sol, essas coisas, nada! Mulher de dono essa! Vai a namorar esse.
- Mas só se namora com mulher de dono?
- Ya, acorda lá John! Com esposa mesmo, NADA!
No restaurante um casal numa mesa, estão abraçados, trocam segredos e risinhos, estão sentados do mesmo lado da mesa:
- Já viste? Como é que duas pessoas se sentam do mesmo lado numa mesa? Nem se consegue falar. Não entendo essa cena, c’mon!! Nem se pode comer assim! Esses dois são game esses! Não são nem namorados!
No concerto eles chegam atrasados, aparecem os dois, abraçados, riem. Os amigos observam, com sorriso forçado. Ele sai para ir ao banheiro, volta para trás:
- Sorry, já me esquecia de beijar a minha namorada. – beijam-se e riem ao mesmo tempo – Volto já!
Os amigos segredam:
- Esses aqui, estão a showofar! Eh pá, tenho mulher eu, mesmo com ela não faço essa cena! C’mon, na rua??
- Ya, essa eu conheço, sabes, eu até acho que essa aqui tem esse namorado só para showoff, porque eles como ficam assim em posster, nada, isso não é namoro isso!
Conversam entre amigos, vários casais:
- Vamos lá sair hoje brada, um jantar nice hoje.
- Ya, convidamos os pombinhos? Hehehehehe!
- Aqueles dois? Nada, não quero. Nem fica bem! Até me sinto mal com aqueles, parece que só eles é que se amam, é preciso aquelas coisas?? Ah, nada! Minha dama até fica a olhar para mim numa de que EU é que estou a falhar! Quero jantar normal, com pessoas normais! Esses ainda vão-nos separar!
- Man, também estás a abusar!
- Ei, nós temos problemas! Toda a gente tem, né? Não tens, tu?
- Ya, mas eles estão felizes, tão nices, deixa enjoyar! Eu até gramo de ver!
- Man, aqueles vivem como se não houvesse problemas, não gosto!
És feliz, estás apaixonado? E é daquelas paixões que se vê? Caminham os dois de mãos dadas? Abraçam-se? Trocam palavras que mais ninguém entende? Vê-se que se amam nos olhos brilhantes? Os gestos entre vocês são lânguidos? Os sorrisos cúmplices? Soltam gargalhadas e continuam mesmo quando toda a gente já mudou de assunto? Gostam de sair juntos, de dançar agarrados? Trocam nomes carinhosos em público? Desaparecem juntos em programas a dois? Pior, beijam-se na rua?
Cuidado. Felicidade de dono é para guardar.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Em processo


Sento-me na esplanada e peço um chá. Demora:
- Desculpe, pai, esqueceu meu chá?
- Não… está em processo. – mas demora, quanto tempo pode demorar a fazer um chá? Penso eu para mim.
- Desculpe, meu chá, esqueceu?
- Não, problema é que o processo está com problemas porque… não temos.
- Não tem chá? Mas porque não disse há muito tempo?
- Não… situação é que no nosso processo, máquina de fazer café está avariada.
- Mas eu pedi chá, pai.
- Sim, mas nós fazemos com aquela água quente da máquina por isso…
- Mas pai, permite uma pergunta? Pai na sua casa tem dessas máquinas?
- Não tenho.
- Mas bebe chá?
- Sim, bebo chá.
- Então?
- Mas esse não é processo aqui, não podemos fazer.
- Paiée! Vai lá na cozinha e pede chá.
- Assim mesmo de aquecer no fogão?
- SIM!
Sim, “está em processo” é frase muito usada.
Ok, é oficial eu mesma também estou em processo.
Pensas no que pensas significa. A tua mente mente? Bebes para esquecer? Mentes mesmo sem saber porquê? Sentes-te mais importante quando tens mais dinheiro? Mais amada porque tens mais pitos? Mais bonita por ter cabelos da índia, ou unhas de gel? Mais respeitado por ter filho? Mais boss por ter empregados? Mais inteligente por teres PHD? Mais reconhecido por apareceres na TV? Mais eloquente por usares palavras mais difíceis? Mais culto por viajares para o estrangeiro?
Ya, eu também, às vezes. Mas eu estou, oficialmente em processo. Como o chá.
E todos sabemos o que “em processo” significa, todos o ouvimos quando fazemos o pedido naquele bar que fica full à sexta-feira, ou quando pedimos coisa fora da lista num restaurante onde não nos conhecem, quando deixamos papéis a serem fotocopiados nas bancas da rua ou quando esperamos de resposta da migração ou pelo B.I. no ministério - está em processo – ou seja, demora, demora muito, é assunto ainda nem introduzido, nem a ser começado, quanto mais processado! Foi pedido, mas nos caminhos do processo que não processa não sabemos mesmo se será alguma vez concluído.
Em também estou, em processo interior.
Mas se… então, em país onde processo nada processa, hummmm, não é melhor eu ir?

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Cuidado com a paixão


Dizem-me que estou apaixonada.
E que isso não é bom.
Dizem-me que em todo o mundo corrupção é corrupção, que aqui como em qualquer parte traição é traição e mentira, mentira é!
Como todos os que estão apaixonados a África eu perdoo tudo. E o que condenaria no país onde nasci aqui acho graça, sorrio, relativizo. Sou apanhada nas armadilhas do pitoresco, do exótico, da novidade.
Ok, e se pensar em escrever sobre África sem falar no céu azul e na água transparente? Sem falar no sorriso aberto das pessoas. Sem elogiar a calidez da temperatura e a doçura das frutas.
África tem outro lado. Eu experimento-o com os olhos no prazer das doçuras mas na verdade também marcam os vergões dos caminhos duros do terreno.
Agora é só escolher o tema. Dos feiticeiros aos envenenamentos, das doenças às drogas, das violências, aos roubos, raptos, agressões. Do trabalho infantil e dos abusos das crianças. Abusos cometidos pelos pais, pelos tios, pelos amigos. Das excisões e das castrações. Da hierarquização das relações onde só importa o doutor e se pisa o pescador.
Sim, África é dura, que fazer?
As crianças carregam água na cabeça desde os cinco anos de idade. Em muitas escolas não há carteiras nas salas de aulas e as notas nos exames podem ser compradas ao professor, por dinheiro ou favores sexuais. Nos lugares mais isolados os meninos com deficiências ainda são mortos e os albinos são alvo de descriminações, chacota, feitiçaria.
Empresas poderosas em Moçambique obtêm licenças especiais do Ministério para trabalhar libertando gazes nocivos para a atmosfera. O lixo acumula-se nas ruas da cidade e podemos ver pessoas a comer directamente dos contentores. Nos hospitais morre-se por interesse de agências funerárias. Crianças são raptadas ou vendidas pelas famílias para prostituição na África do sul. Trabalhadores são explorados com maus salários e desumanas condições de trabalho. Famílias doentes de HIV sida são impedidas de tomar medicação por questões de descriminação, de condição económica, de prepotência familiar. A corrupção verifica-se em todas as áreas do poder, desde a mais simples operação STOP. Não existem condições de transporte, os poucos chapas trabalham sem condições, sem segurança, sem horário. Nas famílias a tradicional poligamia é escondida em nome da correcta atitude cristã. A crença nas medicinas tradicionais é criticada nas suas virtudes e muitas vezes seguida nas suas maiores mentiras. Na maior parte dos prédios os elevadores não funcionam. Os ratos correm pelos corredores, a maioria das pessoas não tem água canalizada. Em muitos dos prédios de maputo cozinha-se na varanda, em fogão de carvão, as meninas da casa descem ao rés-do-chão para pilar o milho no parque de estacionamento das traseiras onde durante a noite pessoas urinam e defecam. Crianças pedem nas ruas, nos semáforos, dormem ao relento, sem escola ou família. Mulheres são vítima fatais de violência doméstica. Empresários dos mais ricos vendem electrodomésticos recheados de droga, vivem em vivendas com mais de nove quartos com parque de estacionamento para mais de vinte carros…
A lista podia continuar.
Todos temos relações com o outro, com o ambiente, com os objectos, com os sons, o céu e a luz do sol. Todos caminhamos envolvidos nos elos das proximidades e nas cerimónias dos afastamentos. A vida e isto, entre os movimentos de aproximação e afastamento.
Eu vivo aqui, e o meu olhar será sempre o de estrangeira. Falo apenas do que me toca, do que me aquece os dias.
Todos sabemos da nossa área de presença, de ser, de estar. Todos sabemos.
Moçambique revela-se, e para mim neste momento é casa e como em todas as casas, começo a pagar o castigo da familiaridade.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Moçambicano lova?


Com as bradas:
- Ela estava na festa e estava a falar com aquele que é meu pito que foi comigo… bom, nem é meu pito mas prontos - beijinhámos nos times! Ok, e papai – marido dela – estava me a perguntar onde eu trabalhava e não sei quê, ela, ysh! Ela eu nem sei se estava com mais ciúme do pito se do papai!
- Sim, e ela ali a dar papo a pessoas com o homem ao lado! Coitado… depois ele é um tuguinha mesmo simpático, já cota ele. Coitado. Não fica bem, sabes? Sim, se ele não estivesse eu nem dizia nada, é normal, marido não está, estás à vontade! Mas a tua família ao lado e tu a dares papos?!
No café:
- Eu sou casado. Sim, quando as moças me perguntam eu respondo – sou casado! Porque se tu gostas de mim por exemplo, tu não vais deixar de gostar de mim por eu ser casado, né? Então, eu respondo a verdade porque é melhor, depois assim as pessoas sabem como fazer, já sabem se podem ligar à noite, se não podem, essas coisas é importante.
Moçambicano namora, noiva, faz anelamento, nikai, lobolo, casamento… junta-se, amiga-se, amantiza-se… mas não faz tudo isto, ou pelo menos algo disto, porque escolhe? Não entendo como corre tão mal o caminho quando quem o escolheu foi o caminhante que o percorre!
Porque sejamos realistas, corre mal!
Entre discussões, zangas, espancamentos, traições, separações e enganos pouco tempo há para viver em pleno o amor.
Noivado, casamento, casa 1, 2, casa 3. Separações, uniões de facto, relações à distância ou namoros… parece muitas vezes que isto das relações nada tem a ver com o desejo, com o prazer, com o respeito, com o sentimento, com o compromisso, com a intimidade…
As fórmulas são muitas, entre duas pessoas que estão de acordo tudo é possível mas por favor - sejam felizes. O resto é que não faz sentido!
As relações homem-mulher continuam a ter uma espécie de efeito hipnótico em mim, não as entendo.
Imaginem duas pessoas que se encontram, que se sentem atraídas, que se aproximam, que se conhecem, que se juntam, que nesse juntar partilham a esteira, os sonhos, os desejos, os amigos, o tempo, os interesses, as alegrias e os receios, as amizades, a casa… um dia ele sai. Sai, vai. E a partir daí são apenas tempo perdido as tentativas que se fazem na aproximação.
Imaginem duas pessoas que se conhecem, que se amam, que fazem filhos, que viajam, que planeiam, que ligam no seu amor as famílias e os sangues… um dia discutem, enciúmam-se, desentendem-se, batem-se… ela sai. Vai. Parte. Jura vinganças e faz chantagens. Sofrem ambos. Para quê?
Imaginem duas pessoas. E agora? Que pode acontecer?
Sou convidada para uma cerimónia tradicional, o Chiguiane, momento em que a família da noiva entrega, simbolicamente, a filha ao homem.
As mulheres estão vestidas com a mesma capulana e cantam uma música, diz a letra que ele não se queixe mais tarde porque esta xiluva, foi ele quem a escolheu!

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Policial moçambicano


Viajo de Marracuene a Maputo, estou atrasada e numa ultrapassagem mais apressada piso o traço contínuo, a polícia manda-me parar. Documentos, ameaça de multa, conversa, conversa…
- Então me acompanhe – saio do carro e sigo a autoridade até uma cabana de caniço -
- Então? Onde está patrão?
- Patrão?
- Sim, marido, ficou na terra?
- Não tenho marido.
- Então vemos assim, dá-me lá teu contacto e te convido para sair um dia.
- … Chefe, quanto era a multa mesmo?
Atravesso a cidade pela avenida 24 de Julho, sou parada pela lanterninha de polícia:
- Boa noite.
- Documentos?
- Hum… parece q está tudo bem. Se senhora puder só me ajudar com qualquer coisa senhora depois pode seguir.
E dois dias depois:
- Ah, boa noite, é senhora, eu nem vou ver, tudo deve estar legal.
- Sim, está tudo.
- Aqui então tudo bem. Só frio só, não pode me ajudar para uma sopa, eu nem jantei, eu…
- Tenho só assim, chefe.
- Obrigada e… senhora, és bonita, dá-me lá teu contacto.
- Ah pai! Refresco e contacto também não, né?
E depois das duas da manhã:
- Senhora boa noite. Vai sozinha?
- Sim.
- Posso entrar aí?
E de tarde, acompanhada:
- Vem a abraçar mão? Assim na via pública? Não sabe fazer isso lá na sua casa? Assim ainda vai provocar acidente a alguém!
- Mas chefe, abraçar mão tem hora?
- Hum… documentos! Bom, cunhada Fartaria, então dá lá beijo a mano que lhe acompanha!
- Chefe tá a dar ordem?
- Dá lá! Hehehe. Ok, tá aqui documentos, podem ir.
- Chefe, sabe que este foi nosso primeiro beijo?
Com rasta a dirigir carro:
- Boa noite, peço documentos.
- Aqui está.
- Está tudo bem, obrigada. Rasta man, sabe que esse é meu sonho? Eu desde criança que sonho deixar fazer rasta, mas aqui neste serviço imagina, né? Não me permitem nada. mesmo meus colegas quando vêm rasta a dirigir carro ou na rua logo querem lhe perseguir a procurar drogas e lhe criar problemas, se soubessem toda a beleza que é ser rasta, se soubessem como eu sonho! Meu filho há-de ser rasta! Vão em paz irmãos. Boa noite.
Amigos estrangeiros dirigem carro alugado:
- A esta hora o senhor se não mentir diz já que bebeu!
- Sim, bebi duas cervejas.
- Ainda por cima admite. Tem multa já!
- Não, mas isso não funciona assim, tem de fazer teste.
- Mas senhor admitiu, paga multa!
Visitantes a Maputo, que vêm trabalhar, que vêm passear, que talvez ainda olhem África com os olhos da Europa, exaltam-se com a corrupção, a extorsão, o incomodar dos turistas, o assédio… Longe de mim defender aqui a atitude desresponsabilizada, muitas vezes abusadora das autoridades, mas também é bom ver que polícia também é pessoa, que tem de muitos tipos e também que como se diz no teatro:
“Policia não tem salário, tem mesada!”