sexta-feira, 27 de maio de 2011

Mestre índia


- Tomaste banho? Dormiste a que horas? O que comeste ao jantar? Usaste muito o laptop?
O mestre decide o que acontece, o que eu como, quando como, o que visto, quando visto. O mestre decide como penteio o meu cabelo – apanhado; como são as minhas roupas – largas e longas; como caminho na rua – de sombrinha, olhos no chão e sempre acompanhada… na índia o mestre decide.
Vamos às compras, porque obviamente que a roupa que trago “is not allowed” nas ruas de Kerala, o mestre discute com o vendedor de tecidos o cumprimento da minha túnica, já para não falar das calças enormes que eu vestirei com ela.
Eu tenho de novo 13 anos! É o que sinto aqui.
Eu viajo para aprender, para experimentar, para sair das minhas rotinas, dos meus hábitos, dos vícios do “eu”, pelo menos durante algum tempo.
Por isso eu, embora não entenda as razões, aceito.
É bom exercício para o ego aceitar. Apenas, assim mesmo, sem engelhar a testa ou levantar a voz, apenas aceitar.
Estou na índia a aprender, vim para estudar uma forma de arte muito antiga, das mais antigas do mundo. Estudo Kathakali, uma dança que conta as estórias dos livros sagrados da índia. Uma forma de teatro onde o actor mostra por gestos, por expressões faciais, por intrincados movimentos rítmicos de pés e com a ajuda de complexos figurinos e magnífica maquilhagem, as estórias das invejas dos homens e das protecções dos deuses. Esta forma de arte é originária de Kerala, estado na costa ocidental do Sul da índia.
Esta costa olha um mar, o mar que encontra Moçambique. E, na minha primeira ida à praia eu tenho vontade de chorar.
- Joana, you do not take swim! Not with that dress!!! – eu não vou explicar ao mestre que não tinha intenção de tomar banho com o meu vestido de algodão bordado de brilhantes, não, porque para mim, lá de onde venho, o banho de mar é coisa especial, sagrada e despida de tudo o que o homem inventou. Mas vim aqui para aprender, para experimentar não ser eu, aceito.
De pés mergulhados na água morna do indico, de calças XXL pesadas pela água, eu fecho os olhos e sinto Moçambique, láaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa, na outra margem.
- Are you praying? – eu não sou religiosa, mas sim, talvez o mestre tenha razão, é quase isso o que me faz pôr as mãos no coração, fechar os olhos e sentir Moçambique.
- I like that. Tourists do not do that. There are many tourists here, but I think you are not one.
- Me? No...
- Promise?
Não ser turista é caminhar no conforto desse outro povo que visitamos, mesmo que seja o nosso desconforto.
Aqui é sentar no chão, invariavelmente sujo, e comer, com a mão, ainda desajeitada. É beber água quente e amarela (jeera gum) quando nos apetece água mineral com gelo. É mudar no corpo as vestes, vestir punjab exagerado ou saree complicado, quando nos apetecia um bikini. É na boca mudar os gostos, incendiar no estômago os apetites. É talvez mesmo mudar os desejos da mente. Sim, isso principalmente.
E eu? Prometo que vou conseguir?

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Made in india


Sim, estou na índia. Escrevo tantas vezes sobre o quanto é bom esta saída. E não falo deste destino em particular falo da saída da zona de conforto.
Sim, há o medo, claro, o desconforto inquietante da insegurança constante. Mas claro que é ilusório. Não este desconforto com sabor a nómada, mas o conforto que o sedentarismo nos dá, esse é que na verdade não existe.
E por isso eu gosto de viajar, de mudar de lugar, de agitar nos passos as certezas do sofá, da televisão, da água quente na torneira, do matabixo habitual na mesa.
Estava há uns anos em Portugal e numa daquelas viagens de itinerância de espectáculos em que toda a companhia dorme em hotel, na primeira noite queixava-se um dos actores “é pá esta noite foi difícil, estranhei a cama, eu não consigo dormir sem a minha almofada”, e a mim dava-me vontade de rir.
O homem é feito de hábitos, sim, mas o mundo muda todos os dias, nós mudamos, os nossos sentimentos não são estáveis, as emoções oscilam e as relações alteram-se. Assim mesmo, todos os dias. Eu não sou a mesma pessoa a quem disseste “gosto muito de ti e das tuas loucuras”, claro que não sou.
E podemos dizer que não temos medo, assim mesmo, não temo viajar, entrar no inseguro avião, enfrentar os desconhecidos perigos das cidades misteriosas para mim.
Eu viajo sim, no caminho que ainda não pisei e me faz tremer os passos.
Como no primeiro encontro com um homem com quem sonhei noites, em expectativa, eu tremo.
Antes de ir não sei bem o que vestir, troco três vezes de saia e penteio os cabelos como se os tentasse domar. E quando chego não sei se olhe nos olhos, não sei se aperte a mão ou lhe beije ao de leve a face.
Chego à índia, primeiras horas no destino que desconheço, são preciosos os primeiros contactos.
Não é obra do destino não, mas no avião encontro um ex-amor e logo ali se lavam os desentendimentos, se cavam as distâncias das culpas. Para quê? É inútil quando no fundo ali só vivem as dúvidas, aquelas que ainda não estamos prontos para responder.
Viajo para aprender. E é agora o momento de viajar. Agora que o meu dia-a-dia me confirma as escolhas: os vizinhos aceitam já a minha maneira abusada de parquear o carro; no caminho para o trabalho já não vejo as acácias vermelhas; na esquina onde bebo com as amigas já nos servem “o habitual” sem perguntar… é quando nos sentimos assim, em casa, que é momento de viajar, de sair, de arriscar.
Eu saio. Saio com o amortecimento macio dos amigos que se despedem, dos alunos que choram, dos colegas que nos sentem a falta
Carrego apenas um saco com pouco mais de 10 quilos de… “coisas”. Para viajar um ano carga tão leve parece prova de desprendimento, mas viajo de coração cheio. E agora sei que com um coração cheio we do not travel light.
Diziam os amigos:
- Vais ter com os monhés?!
- Vais voltar a cheirar a caril pah!
- Vê lá keep in touch não fiques matreca!
- Fazes parte das minhas “amigas om”, que se dedicam a essas coisas das meditações, vê lá se não malucas pah!
- Eu não percebo esse teu deslumbre por um povo que divide os seus em castas!
- Não ofereças os cabelos a Shiva e voltes careca pah!
Digo muitas vezes que Moçambique é minha casa, que em lugar nenhum até agora me senti tão confortável... Entro na índia com a memória forte desse calor, e, embora o plano seja estudar no Sul do país com um mestre indiano eu apanho um avião para Norte e vou encontrar com… moçambicanos.
É para mim deliciosa a visão de um hotel cheio de africanos, aqui, na capital da Índia. Amortecem-me mais uma vez a queda, os caminhos misteriosos dos afectos.
Sim, eu sou dada a estas coisas: espíritos, energias, sinais e xikwembo. É da minha natureza olhar sorridente estes encontros do corpo físico pelas energias etéreas do mundo.
Escrevo. Sim, escrevo sem pensar em ti talvez, acreditando apenas que isto que me toca cá dentro te pode também tocar… aí dentro, na zona do te corpo que mais responde a maia, a energia subtil do universo.
Mas nos primeiros momentos em lugar novo é apenas assim, vemos as coisas acontecerem e não as entendemos. E são estas as armadilhas dos aviões, em menos de 10 horas eu mudo completamente de clima, de língua, de contexto cultural… tropeço no tempo e no espaço, e pelo menos para mim, é… tão brusco. Este momento aqui, o das primeiras horas num destino novo, é tempo apenas de leitura e de adaptação. O corpo não físico ocupa-se bem assim, mas o corpo físico não pode ficar suspenso esse tem de agir, né? Tem de existir.
E o meu existe.
Depois do jantar beijamo-nos no elevador do hotel.
Acordo às 3 da manhã deitada numa posição impossível na cama branca, por uns momentos não sei onde estou. Sinto-me sem dúvida em Moçambique. Acho que bebi demais…
As despedidas são isso mesmo, não acontecem quando eu decido.
Diziam os amigos:
- Yuh! Vais para a índia??!! Nada, paaaah tu já não voltas!
Mas, eu? Na verdade acho que ainda não daí saí!