sábado, 11 de junho de 2011

Mestre índia III


Os mosquitos são tão grandes que eu os consigo sentir a poisar na minha pele, pata a pata.
Mestre não foi sempre mestre:
- Eu quando estudava em kalamandalam – a mais importante escola de kathakali de kerala - praticávamos footsteeps das 4 as 6 da manha, nós antes de levantar rezávamos para que falhasse a luz!!
Mas aqui não sei, não sei quando vivo de facto uma paisagem de sonho ou quando perco a consciência nos rituais sagrados.
- Estou a limpar, as casas aqui são sujas!
- Mas, se varres muito acho que o país desaparece…
Índia é feita de pó. Do desumano, não físico pó.
O pó que cobre as pessoas, o pó que assinala na testa o terceiro olho, em cinzas, em pigmentos coloridos.
Índia é espiritualidade, e não importa se ela molda todos os hábitos dos homens, impossível que o faça, mas ela está presente todos os dias, na vida deste povo. Ela acontece na prece matinal ao altar de Shiva, de Vishnu, de Ganesh.
Nós acreditamos.
E acho que aqui o “não sei” vai juntos com “acredito” aqui, nesta parte do mundo mais do que em qualquer outra.
“Se varres muito o país desaparece.”
O lixo amontoa-se na beira da estrada.
- Sim, mas tu estás habituada!
- Não, nós nunca nos habituamos ao lixo.
Na casa a porta está aberta, uma criança brinca com um pedaço enorme de jaca.
Um sari voa da janela, a mulher corre e sorri para mim, o brinco no nariz parece que brilha mais.
Junto ao cabelo, na zona da testa onde os cabelos se separam, acima do 3º olho uma marca de pigmento vermelho, é casada a mulher.
Aqui, no sul da índia, é assim.
Comemos a refeição na folha de bananeira e inevitavelmente o olhar pára nos canais de água verde, de plantas flutuantes.
Chove, a luz doirada do anoitecer embeleza os campos de Kerala.
- Chaia? (chá)
Porque o espírito respira mais aqui, ocupa-se mais de tempos e rituais de mãos, de mudras, de pigmentos sagrados, de águas purificadas, de fogos purificadores.
Aqui oferecemos aos deuses arroz doce, que partilhamos com os pobres, que despejamos no chão para que os corvos e os cães também deles se saciem.
Índia é mistério na sua rigidez e codificação. É marcado hinduísmo na fronte das mulheres e dos homens, em marcas de cores, branco, negro, vermelho. No passo atrapalhado de saris e saias. Nos cabelos oleados de côco…
Aqui o caril pica, sim, o chá queima, o açúcar enjoa.
Aqui o calor e a humidade marcam na pele seu cheiro inconfundível.
Aqui todos seguimos um guru, a mãe índia orienta o caminho e todos somos espirituais.
Índia são quatro castas, quatro estádios da vida, quatro deveres do Homem.
E para mim tudo na índia obedece a quatro momentos, primeiro questiono, depois deslumbro-me, depois desconfio, e finalmente… aceito.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Mestre índia II


Não é um choque para quem vive em África mas os meus dias começam cedo. No caminho para o kalari – esta palavra significa na sua origem “campo de batalha”, mas aqui é usada para designar a escola, o espaço onde aprendo - passo pelo templo a Ganesh:
- When you see a temple, you worship!
Eu assim faço. Entro no templo devagar, uma mulher que faz grinaldas de flores aproxima-se de mim:
- Where from?
- Moçambique. I mean… Portugal. - eu nunca sei bem de onde sou.
- Aaaaaaaah! Namaskaram!
Namaskaram é a saudação aqui, na língua Malayalam.
Aproximo-me do altar com a imagem do deus com cabeça de elefante, filho de Shiva e Parvati, o “abridor de portas”, o “destruidor de obstáculos”. Olho para as cores e os adornos, são belíssimas as estátuas dos deuses hindus.
- When you see a temple you worship!
I do. Sentado num palco um homem entoa mantras e queima madeira. Eu fico um pouco a observar, fecho os olhos. Chamam a este lugar “God’s own country”. Eu sinto nas narinas o cheiro doce do incenso. As mulheres à minha frente olham-me e murmuram alguma coisa que não entendo, canto apressadamente o mantra de Ganesh, “Om gum ganapatahye namaha”, preparo-me para sair, a mulher chama-me:
- Madama! Ba! (vem)
Chamam “madama” às estrangeiras, como eu! Ela aproxima-se de mim, molha o dedo numa pasta de pigmento vermelho e desenha uma pinta na minha testa, no espaço entre as minhas sobrancelhas. Sorri.
- Nani. – eu não sei bem o que fazer, mas agradeço.
Continuo o meu caminho para o kalari, atravesso a estrada impossível, os auto-ricksahaws (versão indiana do nosso txopela) são como animais cegos e assustados, qualquer que seja o obstáculo na estrada, seja automóvel, pedra ou peão, nada os faz alterar a velocidade ou mudar de direcção, avançam em linhas tangentes a tudo, e só param mesmo antes do embate.
Caminho lentamente, observando nas pessoas nos seus gestos ritualizados.
Índia é isso, código, em tudo o que acontece.
Hoje é a minha primeira aula. Subo as escadas para a casa do mestre de Kathakali – sim, a escola não é nada mais que uma varanda empoeirada onde o mestre se senta orgulhosamente numa cadeira de plástico.
- Where is your guru dhakshina?
Não faço ideia do que o mestre está a falar, olho à volta a tentar ter algum sinal, analiso cuidadosamente a expressão dele à procura de uma pista, nada. Num canto do kalari há um pequeno altar a Shiva, o deus destruidor, em frente ao altar está uma folha verde com uma espécie de fruto por cima:
- Yes, in your first day of learning you give gift to master. What is your gift?
Eu não faço ideia do que se trata, e dentro de mim apenas penso “vim aqui para aprender, não para ser testada”. A aula começa em 30 minutos, eu vou caminhar ali mesmo, na rua da casa do mestre.
As ruas são estreitas e esverdeadas pelas folhas de bananeira, as casas são bonitas e coloridas, as mulheres caminham de olhos baixos, cobertas de panos brilhantes, que esvoaçam. Os homens olham, as crianças gritam “madama, madama!”
Volto para trás, um menino caminha à minha frente com uma folha verde na mão, apanha do chão uma noz, olha para mim, não sorri. O arranjo que tem na mão é igual ao que vi no altar a Shiva no kalari, apanho do chão uma folha e uma flor, junto-lhe um fruto espinhoso e sigo para a aula.
- Master, here it is… my guru dhakshina?
Ele não sorri, está de pé no meio da varanda empoeirada vestido apenas com um pano que lhe faz de saia, apetece-me rir mas ele tem um ar solene. O miúdo que vi na rua avança à minha frente, de cabeça baixa oferece ao mestre o seu presente, o mestre recebe, o menino toca-lhe os pés, depois leva as mãos ao peito. O mestre está de olhos fechados e toca-lhe a cabeça, deposita cuidadosamente a oferta em frente a Shiva, o deus. Eu avanço meio a medo, repito o ritual… sim, aqui a aprendizagem é feita assim, de testes.
Eu passei o primeiro.