sexta-feira, 25 de junho de 2010

A carne é forte


“Mas desculpa lá, qual é o sítio aqui onde não é talho?”
Bradas, siss’s, q andamos nós a fazer? Onde andam as emoções, se não as treinamos bazam, sabiam? Se perdes tempo com esse que te engana e que pagas na mesma moeda enganado de volta, não avances mais.
Sim, falo de novo das relações homem-mulher.
Mana, segue Teu caminho. Sim, talvez não existam pessoas erradas, mas existem encontros que simplesmente não dão certo. Sê mulher, mas orgulhosa na tua feminilidade, no teu poder, nas tuas qualidades – sê guerreira, bela, única – não imites, não caces, não compres, não vendas. Não porque não se pode fazer, porque seja errado, condenável, porque a religião não permita ou a sociedade critique, mas apenas porque se tornou central para ti, é motor da tua vida, e isso sim, é perigoso.
Maputo é uma cidade apaixonante.
Quente e húmida.
Mas muitas vezes estas características não passam da área das relações da carne, das trocas comerciais, dos investimentos que pagam o liceu, a universidade, a casa, o carro, as viagens, os vestidos, os perfumes, a educação dos filhos de sangue.
Amigos visitam Moçambique e apreciam as damas. Amigas visitam maputo e deliciam-se nos papos. Na troca de olhares, no roçar das passadas, no partilhar da mesa, no pagar da conta, no oferecer da boleia, no colar da bunda, da boca, do corpo exterior com salvaguarda do interior.
Entendes do que falo? Falo dos muitos lugares de Maputo que estão transformados em talhos. Nos restaurantes, esplanadas, bares, lobby de hotéis, discotecas.
Não falo da carne que se vende por dinheiro nas ruas dos profissionais do sexo, mas da que se troca por interesse nas zonas mais chiques da cidade.
Não faço aqui juízos morais, ou sequer de valor, aceito e respeito tudo, todos os caminhos e opções são válidos, cada um sabe de si e os caminhos da felicidade e da satisfação humana são por vezes… misteriosos.
Mas falo de quando se perdem as almas, a identidade, a juventude, o prazer, o amor… nas trocas de influências, nas massagens de ego, na superficialidade do desejo vivido como montra de poder.
Em muitos lugares na cidade de vê a cena (refiro-me apenas ao cliché óbvio mas pode tomar várias formas): um homem branco, normalmente mais velho, acompanhado de três mulheres jovens, bonitas, produzidas; mulheres em grupos aguardando as oportunidades de conhecer o próximo investimento; homens jovens e bonitos em fatos da moda e olhares de ave de rapina…
Repito que não estou aqui para criticar, mas observo. Observo os tempos, os ataques, as estratégias, os passes arrojados… e por vezes fixo-me nos códigos. Porque a comunicação é tema que me fascina, porque seduzir, engatar, fazer game, é comunicar – é medir, é aproximar, é conquistar. Mas em muitos lugares desta cidade é cansativo. Ninguém passa despercebido e todos entram na regra de que só podes estar aqui a fazer uma de duas coisas, ou a comprar ou a vender. E mesmo os que no seu país natal são tímidos e reservados aqui vivem todos as fantasias do D. Juan. Mesmo os mais insonsos britânicos, os mais snobs franceses, os mais frios suecos, os mais treinados marialvas portugueses ou os mais racistas sul-africanos - todos atacam, e em todas as direcções.
Maputo é cidade diversa, cheia de contrastes, exotismos e cosmopolitismo, visitada por turistas, em estadias curtas e prolongadas, em negócios e lazer, muitas nacionalidades, muitas etnias, muitas culturas – paisagem humana fascinante, seja masculina ou feminina, diversidade arco-íris e… oportunidade. A música embala, e o calor que se faz sentir (ou costumava!) derrete as inibições. As pessoas soltam-se e voam em “moves” arriscados. Mas a noite quase perde o erotismo e torna-se lugar de caça. E um amigo acabado de chegar, ainda resistente pergunta: “mas aqui há algum lugar que não seja um talho?” Eu vou respondendo que sim, que há, mas tenho dificuldades em provar o meu ponto.
Mulheres perdem as horas da escola no salão, nas unhas de gel, a investir no futuro – acreditam. Homens usam os talentos e os defeitos em apostas de passaporte… e todos nos distraímos assim.
Sim, recebem as oportunidades do estrangeiro, as viagens, o estatuto, os filhos de uns e o sustento dos outros…
Sim, a vida é feita de caminhos, mas este não avança, tropeça.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Do futebol


Quando as pessoas estão a ver futebol eu acho que elas torcem pelo equipamento.
Sim! Porque vejamos, determinado jogador, que aplaudem quando joga para num clube, apupam e insultam quando joga para outro. Os treinadores como outro exemplo, mudam de acordo com os contratos, o orçamento, e outras coisas pouco ou nada relacionadas com a prática de um desporto.
Ora se alguém torce sempre pelo Benfica ou pelo Ferroviário de Maputo, no fundo torce por um equipamento, porque essa é a única constante!
Ok, eu confesso – não sou adepta de nenhum clube de futebol. Não vibro com a proximidade de um jogo, não vou procurar o lugar com o maior ecrã, não faço programa com os amigos nem contra-programa com as amigas. Nem penso nisso. Há um jogo, ok, nice, e então? Porquê tanto entusiasmo??
Não tenho nada contra o desporto, ou este jogo em particular, contra as tácticas, as regras ou a bola (ou esférico como gostam de dizer os comentadores). Nem sou contra as declarações dos jogadores sobre os prognósticos no fim do jogo, os bodes respiratórios, a decisão acertada de perante o abismo dar o passo em frente… É verdade que acho escandalosos os ordenados milionários que o desporto envolve, num mundo onde temos tantos problemas básicos para resolver, mas enfim, não é nada disso que me incomoda.
Apenas… não me toca.
Não impeço ninguém de ver o jogo nem tentaria convencer - comprando um maior plasma, instalando tv cabo e recheando a geleira de Laurentina – o namorado a ver em casa. E até posso sair para ver um jogo – no estádio, de preferência – nada contra. Mesmo.
Só estranho o fenómeno apenas porque a mim, na verdade, parece-me que as pessoas não gostam do jogo. Mas entusiasmam-se por tudo o resto! As intrigas entre os clubes. Os valores dos contractos milionários, as vidas privadas e médicas dos jogadores, as claques, as vuvozelas.
O futebol para mim faz parte dos mistérios religiosos – sim, porque é misteriosa a maneira como as pessoas se vestem todas de uma cor, seja ela qual for; usam um cachecol, esteja o clima que estiver; gritam, seja qual for o espaço onde estão, mesmo que seja a sala de estar; sofrem ou rejubilam, qualquer que seja a sua vida emocional… as pessoas praguejam com televisores, insultam relatos de rádio, amaldiçoam feedback nos celulares. As pessoas vivem o futebol. Com plenitude, fervor, fé.
Pelo futebol as pessoas deslocam-se, despendem de dinheiro, aguardam horas em filas, suspendem trabalho e abandonam salas de parto.
Começou o mundial. Todos sabemos.
E graças a isso podemos ver grupos de homens barulhentos misteriosamente vestidos de bandeiras a encherem as cidades, os autocarros, os bares.
Graças a isso muitas pessoas sofrem de ataques repentinos de nacionalismo e a bandeira passa a ser um acessório imprescindível. Porquê? Quem é que em qualquer outra situação acharia normal que se vendessem bandeiras na rua?
Eu gosto de desporto, e adoro a sua característica performativa - depende de um momento e do talento de várias artes em constante improviso, entregues ao acaso.
Gosto de ver um bom jogo, e entusiasmo-me com os golos, ora até aqui é pacífica a minha companhia a assistir, o problema parece ser que eu me entusiasme com todos os golos… Porque quando me perguntam por quem estou a torcer eu digo que estou pelo que ganhar. Ou seja, eu tanto estou pelo México, como pela África do Sul; pela Alemanha como pela Austrália… estou literalmente por quem jogar melhor.
Um bom golo é um bom golo, ou não é?

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Da solidão


Quando saí de Portugal saí da família. Do grupo dos amigos, da partilha dos colegas do trabalho, da familiaridade dos conhecidos. Saí. E saí sozinha. Trouxe comigo a instabilidade de uma paixão e a dedicação incondicional de um cão. Só.
Talvez só quem está no estrangeiro, sozinho, sabe do que falo. Só esse sabe da misteriosa doçura que tomam as questões familiares, que na terra natal eram amargas. Talvez só esse saiba o que sinto quando estou de visita e se aproximam os amigos que não via desde os 15 anos e com os quais lá na terra nunca falava. Só esse sabe a vontade repentina de ir aos encontros foleiros da turma que quase esquecemos. Só esse pode saber como a saudade nos ataca quando menos esperamos, e toma forma nas coisas mais surpreendentes.
A mim atacou-me em viagem: num salão do Botswana o cabeleireiro sul-africano ouve Dulce Pontes e eu, enquanto me lavam o cabelo, começo a chorar, assim mesmo, sem pensar, sem gostar mesmo da música que toca, apenas sentindo numa zona indefinida do eu a intraduzível saudade.
Mas a verdade é que nem lá nem cá, em nenhuma parte existe isso a que se chama companhia, aquela que mata a solidão. Todos estamos sozinhos, nascemos assim, assim morremos e pelo caminho… pelo caminho vamo-nos enganando.
Podemos enganar-nos, claro. Dizer a nós mesmos que estamos em companhia. Com os pais, os irmãos, os maridos, as namoradas, os bradas.
Em África as famílias são grandes, são alargadas, o primo é irmão e a amiga da mãe é sempre tia. São maiores e mais presentes, mais activas nas vidas de cada um de nós, mais envolvidas, mais solidárias…
Quando cheguei a África cheguei sozinha, com um apoio frágil, quase quebrado, e vinha cada vez mais consciente da solidão que nos acompanha – ela sim nossa única companhia – a cada um de nós.
Mas não minto, quando a minha empregada se mostrou preocupada pela primeira vez comigo, quando me ferveu ervas para o chá, quando me fez matapa por saber que era meu favorito, quando me perguntou pela saúde, quando mentiu para me proteger, quando me veio trazer à saída o casaco por achar que estava frio, quando me disse que ela era agora a minha mãe - a minha mãe africana, eu senti-me melhor.
Quando as minhas bradas, apenas conhecidas de ocasião, me ligaram preocupadas, quando me receberam em casa, quando me levaram aos almoços e festas, quando me apresentaram à família, quando me ofereceram quarto e mimo, eu senti-me melhor.
Quando o homem com quem posso partilhar as coisas do prazer, do lazer, do amor, se lembra e se dedica aos pormenores íntimos de uma preocupação, de uma vontade de protecção, de uma presença quente e intensa, eu sinto-me bem.
A mente é apanhada quase de surpresa com o presente e o corpo, fraco, logo amolece, descontrai em sorrisos e apetece abraçar o mundo.
E eu sentia que começava a ter companhia. Começava a enganar-me nas formas da proximidade. Devagarinho começava a encontrar uma família em África. Uma mãe, muitos bradas, irmãos e irmãs. Já havia merendas, que recebia; e capulanas guardadas para mim, numa casa. Havia convites para almoços de domingo e um lugar guardado nas festas fora da cidade. Havia.
Um dia destes ligou-me uma mãe. Ouvi as preocupações dedicados e maternais e senti a saudade da mãmã que tenho longe e senti desejos de fertilidade que nem sei se me assiste. Porque parece tão constante, tão incondicional a ligação de mãe.
Estou em casa e como uma massa feita que fiz, por razões misteriosas para mim não é o tempero, os ingredientes, o tempo de cozedura ou o capricho da receita que fazem diferença no que saboreio. Não, para mim o apetite é… companhia. E as papilas gustativas parece que se negam a participar em refeições a só, e tudo me sabe… ao mesmo.
Estou sentada a ver um espectáculo e resisto a encostar o meu ombro na pessoa que está a meu lado, resisto a pedir atenção, carinho, conforto.
Porquê? Porque ele não existe. Só o imaginamos. E estamos sozinhos, todos nós. Mas podemos estar sozinhos nós os dois, juntos. Hoje não é assim: estou sozinha, sozinha.