sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Corpo sabe


Não consigo mandar msg
A saudade é uma memória do estômago, dizias tu em tempos.
Toca o celular, atendo um número que desconheço. Do outro lado uma voz, não sei quem é mas a sensação é boa, sabe-me a atenção esta voz, soa a conforto, não a reconheço mas o meu corpo tem memória… ele reconhece.
É quando reages ao ouvir a voz de alguém que amaste, voz que não sabes que lhe pertence… é aí que vês que esquecer não é uma opção…
Nunca usei esta frase porque nunca entendi bem onde pode ir a ideia, não sei bem se concordo, se discordo… mas na verdade sim, saudade é memória… e no estômago tenho as sensações mais fortes.

Enjoyar casa nova. Sem pressa. Ler uma frase de um livro antes de o arrumar na estante. Descobrir roupas que desconhecia, encontrar fotos que esquecia. Ouvir música sentindo nela novas camadas de emoção.
Nos intervalos escrever. Bebericar chá e deixar o açúcar de passas desfazer-se na boca.
Ocupar o espaço lentamente, como se decidisse com ele onde posso ir.

Escrevo com vista para a água, só agora reparo que do outro lado da rua, na casa em frente vive um pastor alemão, é dele o ladrar que me leva de volta a memórias…

Arrumar coisas é isso, lidar com memórias, cada objecto tem uma estória, cada um me leva a diferentes zonas da mente. E do corpo.

E nas arrumações há…
Há sempre umas malas e uns sacos que esvazio quase sem lhes tocar, coisas difíceis de arrumar, que me obrigam a pensar, que me fazem decidir, aquelas coisas inúteis mas que não deitamos fora, ou aquelas importantes mas que perderam seu lugar definido dentro de uma casa.
E sempre que arrumo roupa sonho com o dia em que terei a capacidade de usar apenas uma coisa, como os monges tibetanos com as túnicas laranja. Usar apenas isso, sempre.
Pergunta o meu lado consumista onde se poderá comprar uma… terei de esperar por vidas mais espirituais para isso. Arrumo.
Estou cansada de estar em casa, vou tomar caipirinhas com as amigas e jantar com os amigos. Oiço as estórias de África nos tempos coloniais, as estórias do mato, das caçadas, de mangusses e impalas de estimação, as estórias de dentes de elefante rendilhados, de mansões de 11 quartos e três famílias de criados. Estórias de militares violadores, de militares galanteadores em bailes nas boites do Polana e do Girassol. Estórias de pedidos de casamento e planos de fuga, estórias de amor de mais de 30 anos, estórias vivas ainda nos olhos das pessoas, na memória dos seus corpos.
Depois do jantar vou beber uma bebida num dos talhos da cidade, e o contraste entristece. Não que o mundo não seja uma maravilhosa diversidade de possibilidades, não que julgue o que se passa, mas que sinto cá dentro do peito saudade de fazer amor. Sim, sinto.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Pão não


3 de Setembro, zona continua calma, ligo para o serviço mas a tal greve é de três dias, hoje ainda nada. Recebo sms na mistura linguística habitual:
“What a week, take care, the city wakes little by little, somes chapas work, but lots of military in bairros, let’s hope for melhores dias.”
Um homem andrajoso remexe o contentor do lixo, encontra um saco de plástico que abre, põe a mão lá dentro e começa a comer, eu perco o apetite para mata-bicho.
Hoje tudo se confirma calmo e eu preparo-me, mesmo antes de sair toca o celular e avisam-me “careful, vai haver distúrbios a partir das 12 horas”… apesar disso saio à rua, tudo parece normal, mas nos ATM não há dinheiro, nas padarias não há pão, e no supermercado indiano tudo está meio fechado com grade. Os donos nervosos vigiam tudo. É estranho estar sozinha, de cesto na mão, a pensar se devo ou não rechear a casa de mantimentos para um mês. É estranho fazer fila para escolher coisas num país onde pode rebentar a guerra. Mas em qualquer país pode rebentar a guerra… Fico-me indecisa nas prateleiras que devo escolher… massas? Sim, decido-me por isto.
Saio para usar a internet, funciona. Na pastelaria encontro os conhecidos:
- Vinhas comprar pão?
- Eu? não. – reacção um pouco nervosa, quase envergonhada. Por querer pão? Como se a causa de toda esta confusão fosse de facto o pão!
Eu ainda pergunto ao balcão, por curiosidade:
- Tem pão?
- Nada, não temos.
Viajo na internet, e só sei que os distúrbios na cidade me ocupam mais do que pensava porque estranho no facebook os status de outros amigos, que falam alegremente da família, das férias, do amor… nestes últimos dias em maputo não se compra, não se ama, não se briga, não se estuda… vive-se e respiram-se os tumultos, apenas isso.
Muitos amigos estão preocupados, alguns que aceitam a sede de sangue dos media europeus como verdade, outros que conhecem África e sabem que pode tudo mudar…
Não deixam de me passar pela cabeça as estórias e relatos de outras pessoas e de situações semelhantes, com ou sem desfechos pacíficos.
Desligo o computador, na saída o conhecido está de volta e pergunta ao empregado baixinho: - Tem pão?
- Ainda. – ele sobe o tom de voz:
- Então mas não era dentro de uma hora que havia?! – eu passo por ele na saída:
- Então sempre querias pão!
Eu volto para casa, arrumo.
É inevitável pensar. E sentir como é bom dia para namorar, como seria bom, ficar aqui, agora, apenas abraçado. Sinto-me só entre as minhas coisas vividas.
E na verdade agora de repente, eu que raramente como pão até me apetecia… apetecia-me.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Papai governa


Sonhei que África era abençoada. Não só pelo clima, pela beleza, pela fertilidade, pelos espíritos, djin e xikwembo...
Conheço um bocadinho de África: os grandes desertos; as águas doces, turquesa; os países de gente esquecida pelo petróleo; os lugares das cegueiras de diamantes; os da riqueza exuberante dos barões e… os da pobreza absoluta. Selva e beleza.
Sinto uma comichão no peito. Pequena, suave, quase nada, toco ao de leve com os dedos, olho e vejo uma formiga minúscula, está quase colada à minha pele, toco-lhe de novo para a tirar, apenas para a mudar de lugar, mas a minha força é difícil de medir com um ser tão pequeno, esmago-a. Fico a olhar para o meu dedo e balbucio um “Om Shanti”, não era minha intenção…
Dia 2 de Setembro. “O paish vai ardher” já não é premonição, é descrição. Amanhece e eu continuo com a sensação morna de um feriado de verão. Mas um feriado estranho. Há poucas pessoas na rua, caminham lentamente, os carros passam solitários de hora a hora. A baía está serena, oiço chorar o bebé do prédio vizinho e ao longe – tiros! Ainda. Ainda não acabou. Dizem-me que nos bairros mais periféricos se sente a tensão de quem prepara o plano e espera a oportunidade.
Sonhei que África era abençoada por mais do que lendas, mistérios, calores e desejos.
Diz quem viveu os tempos que a fila de pão hoje lembra as filas do abastecimento, “longa, esfomeante e cansativa”.
Recebo nova sms “Defunto foi transportado de txova por falta de carros disponíveis no hospital, passou na avenida Julius Nyerery. Places de food encerram after sunset. Ruas pertencem aos peões. Falta de gasolina, pão, água. É este o update às 20h30”.
No noticiário em Portugal declaram que estão de volta os tiroteios às ruas de maputo. A família telefona preocupada. Na minha rua nada se passa, tudo calmo. Aquela calma estranha que parece segurar em suspenso as energias, calma que acama os ânimos. Calma que antecede as agitações. Há mais de um ano que vivo sozinha em Moçambique, sempre me senti bem mas agora… não me sinto muito segura. A casa nova é grande, vazia… hoje sinto-me estrangeira.
O vizinho na varanda ao meu lado escreve o computador Mac e fala ao celular em italiano, tem um ar nervoso.
O vento forte faz bater as janelas, os cães ladram, mas eles não sabem o que se passa. Pois não?
Sonhei que África era mais generosa, como são a mãe natureza que ainda nos governa os dias.
Sonhei que África era abençoada por mais do que generosidade das paisagens, dos animais, das tribos… mais que músicas, frutas, mariscos, praias…
Sonhei com o dia em que África é abençoada por governos também generosos, que não precisam de ler no discurso escrito a palavra “condolências”.
Um governo que viva com o povo e não com medo deles, e não em relação paternalista de castigo, ou de dono para seu cão, nos reforços positivos para ensinar a obedecer. Um governo que seja pai, porque assim na verdade eu cá sinto-me órfã!

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Moçambicano tem papo, mas… II


Ser ou não ser, em moçambicano.
Aqui, em geral, não se ouve nunca um não, é muito raro.
E isso parece bom? Generoso? Concordante?
Não é.
Estou em casa. Ele senta-se, nervoso. Há dias que age de forma estranha, há tempos que foge, há semanas que pouco ri, nada dança e mal beija. Amor faz mecanicamente e o seu olhar fala muito de deveres e pouco de prazeres. Depois de um mês de fugas, e sob pressão, ele começa finalmente a falar:
- Sabes?... eu… não me sinto bem… eu… não consigo falar sobre… o que sinto… e embora me sinta assim há… muito tempo… só agora que estamos… aqui… consigo dizer-te que… eu… não consigo dizer…
Parece um excerto do teatro do absurdo? Poesia? Simbolismo.
Não é. É a pura realidade.
Sim, dizem que eu vivo em fantasia mas é a realidade que é assim!
A questão é que moçambicano não fala.
Esconde, disfarça, reprime, representa, finge, mente.
Não gosta de dizer que não e aceita quase todas as outras opções.
- O que é que tu fazes?
- Sou actriz.
- Sim, eu vi-te num DVD de uma peça de teatro aqui! Nice.
- Sim, a joana faz parte do 1% da população que fazem aquilo que gostam.
Duas coisas engraçadas, a primeira é que ninguém imagina que eu possa fazer teatro e não gostar. A segunda é que seja extraordinário, quase revoltante – sentimos muitas vezes o tom áspero do comentário – que alguém possa fazer aquilo que gosta.
E para mim tudo isto se prende com o Ser.
Não sei se sou só eu que vejo isto, mas parece-me que o mundo anda virado. Ou então é o verdadeiro sentido da vida que me escapa! Vivo para quê afinal? O grande objectivo de uma vida não é a felicidade? A minha, a dos que me rodeiam, a do mundo e da sua tão esperada paz?
Não é isso?
Ok, então vivo mesmo num mundo paralelo.
Mas desconfio que seja apenas na prática que isto possa chocar alguém. Porque em filosofia, em ideia todos concordamos, mas é na prática que me chamam, a mim!, utópica… não entendo.
Diz-me a minha mãe que eu me dou demasiado, que me exponho, que mimo, que cuido, que amo. E que devo ter cuidado porque as pessoas não merecem, que cada experiência devia ser uma aprendizagem do que devemos e não devemos fazer. Que eu devia guardar-me, poupar-me…
Mas para quê? Para quem? O Outro não merece ser amado? Seja quantos tenham sido os que falharam, não merecemos nós, tentar de novo? Amor não gera amor? E não receberemos mais tarde ou mais cedo aquilo que damos?
Sim, respondem-me, em teoria estamos de acordo contigo, mas na prática não podemos agir assim.
Como!? Para que serve então esta teoria?
Penso no teatro, na famosa frase “ser ou não ser”. Engraçado, esta questão é colocada como se fosse de facto uma opção!! Penso no desafio do teatro e parece que só agora entendi o verdadeiro significado desta questão… como chamá-la? Filosófica, diriam.
Mas cm’on? Filosofia? É das mais pragmáticas que conheço!
Pensamos e queremos: just be.
Mas é tão difícil ser…
A questão não é se devo ou não ser, a minha questão é se consegues, alguma das duas coisas. Porque neste caso há apenas dois tipos de pessoas, os que são e os que não são.
Mas, posso acrescentar outro? Há os que gostariam de ser.
Eu adoro Moçambique, e no coração sinto-me moçambicana, mas aqui se vê que não sou de cá porque eu… eu pelo menos tento!
Talvez me repita na ideia, mas já imaginaste que o que és pode ser muito mais interessante, cativante, apaixonante que o que tentas ser? O que imaginas que os outros querem que sejas?... Abre os olhos, isso não importa. Apenas sê tu próprio, e isso ninguém te pode tirar. O resto? O resto encontra-se nas novelas e copia-se das músicas pop.
MOÇAMBICANO VERDADEIRO PRECISA-SE.
Quem estiver disposto a ser pode contactar-me.
Kanimambo.