sábado, 25 de dezembro de 2010

Mcel = homem


Mcel é como homem, homem casado que te deixa em stand by à espera do SEU tempo livre.
Mcel é como homem, homem mulherengo que desaparece na tarde 6ª e só regressa às 12h. de domingo.
Mcel é como homem, pito ingénuo que oferece presente e espera declaração.
Mcel é como homem, homem-marido que não honra contrato mas também não o cancela.
Mcel é como homem, homem-amante que… não… mcel não é amante, é marido mesmo!
Trocam-se os comentários na net:
- “He he he... Nem posso entrar na discussão das operadoras... Mas o tudobom tá melhor que o estamos juntos...”
- “Ahahahahah ya... tudobom é que é! Quem quer estar junto se não for para ser tudo bom?”
- “Quem continua fiel dá-se por insatisfeito, sempre a reclamar a falta de rede, roubo de crédito, desvio de chamadas… enfim tal como homem-amante a vodacom é diferente, tá sempre no clímax, disposto em qualquer lugar, é tudo bom!”
Sim, mcel é como homem.
Hora do almoço está “not available”.
Serviço de apoio ao cliente – leia-se de pedido de… esclarecimentos… ou de satisfações! - nunca está disponível – “falamos disso depois pah!” – porque a ligação não é boa – “agora tou busy, tou incomodado, tou… não dá pah!”
E a partir das 15 horas numa sexta feira, claro… homem e mcel tão juntos e “cannot be reached…”
E se decidimos ir atrás, mesmo quando conseguimos ligação inevitavelmente a comunicação demora, e seja em português, inglês ou changana, é preciso carregar um botão – que a mcel informa qual é “press one” e que no homem temos de adivinhar – mais do que uma vez, e aceder mesmo a aceitar uma língua qualquer, mesmo que não dominamos – sim, porque homem embriagado ou pressionado é tudo igual, não se entende o que diz - que mal entendemos, para termos a hipótese de ser pelo menos ouvidas.
Há homens giros, sim, mas embora sejam mais práticos não nos trazem as vantagens do homem por contracto. - Dizem…
Mas eu cá prefiro! Prefiro o pré-pago! Sim, é um investimento em coisa arriscada, duvidosa, por demais instável, mas… vejamos, no homem a contrato eu só sei o que devo no final do mês, e é invariavelmente tarde demais para eu corrigir eventuais erros na factura…
E depois há os clientes com pré-pago que recebem mensagens como se tivessem contrato: “a sua factura deve ser paga até dia x”. E depois segunda sms; “por lapso a mensagem anterior tinha informação errada, a sua factura deverá ser paga até dia tal”. E por último uma terceira: “caro cliente pedimos muitas desculpas pelo incómodo que podemos ter causado, houve um erro no envio da mensagem para o seu número”.
Isto é mais ou menos o mesmo que eu ligar ao game de uma noite a perguntar onde estão as minhas camisas engomadas.
É mais ou menos como me chamarem Maria três dias seguidos e depois confessarem que não é que me confundiram, é que não sabem o meu nome mesmo…

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Verão é tesão


É verão. Ela está sentada debaixo da acácia. Transpira. O verão de África destila-nos o corpo, pelas pernas abaixo escorre um fio claro de suor.
Passa um homem. Bonito. Os nossos olhares seguem-no…
- Ysh!... homem bonito Moçambique tem! He He Heiiiiii…yaaa…! – suspira um sorriso.
O chão está coberto de flores vermelhas que despem a acácia. Tenho um sentimento profundamente… feminino, aqui. Apanho uma flor e comento-lhe a forma, ela sorri:
- Essas flores sujam tudo pah!
Hoje não estiveram juntos e a ela dói-lhe a cabeça. Não lhe apetece mas fala:
- Sim, nesse dia regressei para casa ainda quente, ainda transpirada do sexo, ainda emocionada pela… velocidade… não, pela intensidade! Assim é que é! Sei que fui com ele por tesão e sei que não foi porque tivesse falta de um homem, de um homem qualquer quero dizer.
É sempre assim nos primeiros momentos, o meu corpo deseja algo que a minha mente consciente questiona, por vezes reprova mesmo. Fico assim um tempo, a saborear apenas a tensão dos opostos… e uma desejada… penetração. É assim que se diz, né? Ya, maningue… mas não soa bem, não soa ao que sabe essa cena! – ri-se.
E nestas primeiras conversas, invariavelmente… nos homens alguns tempos parecem-me… ridículos, algumas expressões do rosto são… esgares que desfiguram mesmo as feições mais bonitas… e algumas palavras ou frases… são risíveis!
Ahahahahahah … Mas desejo algo aí… tesão está no desequilíbrio… nesse agir meio fabricado dos primeiros momentos da atracção. Sim, são bem visíveis os artifícios da sedução masculina, as palavras forçadas, os elogios exagerados, os desenhos desastrados das pequenas armadilhas. Os enganos, as mentiras mesmo! Tudo se percebe aqui mesmo, nos primeiros momentos de um papo.
A confiança exagerada dos homens mais velhos, paternais e professorais; o caminhar ridiculamente gingão de um corpo gordo, ou pouco atlético; a pressa naïf dos mais jovens...
Sim, não sei bem o que me fez ir para a cama com ele assim… no primeiro encontro, depois de um almoço numa tarde em que chovinhava.
Bebemos vinho, e entre os goles ele desenhou sua teia, metade eu neeeeeeem ouvi! Na verdade eu não queria falar. E enquanto ele achava que partia os gelos eu observava como no cruzar dos braços os ombros dele ficam… pequenos para um corpo tão… corpo. Achei-o bonito? Não sei… logo que cheguei não! Acho que não...
Mas quase intui o que nele me iria apaixonar… o sorriso aberto e safado… sim, yaaaaaa, é bonito! Também a-do-ro os braços dele! Não gostas desses braços assim que enchem a mão? Ysh! ya, eu gosto maningue! Corpo pah? Tem!
Às vezes acho que eu me divirto apenas com isto: conhecer homens é conhecer o Homem e as suas fascinantes manias!
Sim, observo-lhes a postura nas primeiras vezes, mesmo na cama, dou por mim a ver as tensões no pescoço, a firmeza dos peitorais, a forma do pé que se mostra no enrolar orgásmico dos dedos dos pés. A maioria dos homens dobra os dedos dos pés quanto se vem, sabias? Sim, eu vejo isso… muito.
No tema ele foi directo e tenho de dizer que foi eficaz eu... ei, eu não resisto! É para fazer o quê? Gingar? Não vivo no tempo das donzelas nem acredito nos machismos, não me importa o que dizem ou que pensam os outros e sem problemas assumo as minhas escolhas. No que faço eu sou mais EU!
Sim, seduz a tesão que encontramos nos outros. Um olhar focado no meu corpo molha-me… e nesse dia mesmo conheci mais um desses hotéis que alugam quartos há hora!! Ahahahah, a vida é simples mana… people é que com-pli-ca.
Sim, é um começo questionável, condenável mesmo diria a minha mãe, mas começou assim…

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Envelhecer casa II


Casa 2 não tem tempo, tem espera.
Casa 2 não chega e cumprimenta, na rua encontram-se? Ela disfarça.
Casa 2 não aparece, pergunta se pode vir.
Casa 2 não liga, manda sms.
Não manda sms quando quer, tem horário.
Não vai a festas, vai a programas.
Não se veste, despe.
Não sabe, imagina.
Não é informada, é enganada.
Não é exclusiva, é emprestada.
Não sonha, viaaaaaaaaaaaaaaja.
Não discute, confusiona.
Não tem opinião, tem mania.
Não planeia, é planeada.
Casa 2 não passeia, vai a gones.
Casa 2 é full time djob com salário de part time.
Casa 2 não almoça junto, é sobremesa.
Casa 2 não fala, escuta.
Casa 2 não manda, obedece.
Casa 2 não sabe, desconhece.
Casa 2 não conhece os amigos, conhece os manos.
Casa 2 não conhece a família, é conhecida…
Casa 2 não tem marido, tem marido de dona.
Não engravida, dá o golpe.
Não ama, sofre.
Não tem cunhada nem sogra, tem metade de homem.
Casa 2 não vê, é cega.
Casa 2 não fala, grita.
Casa 2 está sempre ocupada, amiga convida:
- Queres sair hoje?
- Não sei ainda… falamos. - e às vezes ganha coragem:
- Ok combinamos jantar! - mas aí depois liga o damo e como ele tá livre, tem 30 minutos disponíveis, joga às 20h, tem reunião de manhã, viaja na próxima semana, quer uma noite… ou um beijo… casa 2 tá livre… sempre.
Se casa 2 se cansa e resolve sair, claro que sai, pode. Mas sai sozinha, ou com a amiga que sabe ficar, calar, disfarçar, porque a qualquer momento da noite ele vai ligar:
- Tás aonde?
- Tou aqui com minhas amigas.
- Eu tou free.
- Ok… eu tou aki e…
- É para eu fazer o quê? Eu estou AQUI.
- … Ah… não queres vir?
- Nada, vem cá tu... gostosa. Anda, tou à esperaaaaa.
E ela sorri, comprometida.
Sorri porque é carinho o chamado do homem. Porque hoje se sente importante, damo está a chamá-la. Sim, porque assim não soa a um convite, soa a uma ordem mas… ela sabe… e no fundo, bem no fundo ser mandada assim é tão… excitante.
Durante dias damo tá busy, não liga, não responde, não convida.
A saudade aumenta, sim, porque casa 2 ama, sonha em ser casa 1, bem sabemos.
Hoje ele liga, e pode ligar a qualquer hora, o tempo é dele. Ela atende, e escuta, fala pouco, mas decide logo porque… não sabe quando damo estará assim free de novo para ela. Despede-se das amigas:
- Mas não íamos ao Lounge hoje, afinal? Aaaaaaaaaaah já vais?
- Talvez venha lá, vou convidar e… talvez…
Mas ela sabe que não. Que de lá de onde ele está eles não vão para o Lounge, para o Coconuts ou para o Dolce Vita, dali vão para um quarto de hotel dos mais baratos ou para um gone no banco de trás de um carro. Sabe que não vai encontrá-lo nos bares fashion da noite, nem vai sorrir aos amigos ou passear de mão dada, não vai dançar uma passada nem receber um beijo na boca na chegada. Vai sentar, vai beber, vai seguir o seu homem quando a tesão falar mais alto. Por isso ela vai. Segue-o.
E casa 2 já nem sabe como isto começou, não lembra se sabia que este homem não estava livre e sonhava em tê-lo para si, acreditando nas promessas e nas queixas de casa 1 falhada; ou se não sabia… se começou a ver nos tempos e nas ausências que não era a única…
Casa 2 não tem vida, casa 2 é envelhecida.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Envelhecer casa


- Casa 2 tem de saber seu lugar! Comportar-se pah! Agora, comigo – paragem brusca para reformulação - Quer dizer, quando eu faziaaaa essas coisas, se casa 2 vem aqui e me vê com minha mulher, que ela pode nem saber se é minha mulher ou não! e fica a fazer gracinha, a mandar sms e não sei mais quê! Pah, não dá! É para chegar e ficar dis-cre-ta! Sem palavra, olhar só. Ou nem olhar! Nem mostra que me conhece!
- Porque casa 2 que sabe se comportar normalmente passa a casa 1.
Sim, porque casa 2 não é primeira, é segunda.
Casa 2 não está feliz, casa 2 tem plano. Casa dois quer subir.
E para que este interesse se mantenha o seu homem faz surpresas, carinhos, mimos mesmo, deste género:
- Onde é que estás que eu passo aí?
Tipo, passo aí onde estás, eu vou e não me comprometo, porque tu estás aí, não combinei contigo, e passo, eu estou de passagem, por isso não sou bem eu, não me vou expor nem desenvolver muito o que quero dizer, ou fazer. E não vou sozinho, não! Damo vai com brada, chega em grande estilo, e antes de se dirigir sequer a casa 2 ele dá um giro no espaço, mede os adversários, o ambiente, e aí sim, dá o beijinho que não compromete, aperta a mão de quem não conhece e talvez até sente um pouco, talvez… mas tá busy, não vai ficar, vai bazar. Ou fazer para ela o olhar de “vamos?” e não importa se ela está com amigas ou amigos, família ou patrões, ela vai. Se não já, mais logo, mas ela vai.
Ser casa 2 é isso, ficar em standby dias inteiros, e receber em doses homeopáticas as frases:
- Estou na tua zona.
- Anda.
- Sobe.
- Desce.
- Vem me apanhar.
Mas não te zangues já com este homem, nem penses que é cruel, porque não foi ele! Ele não ligou e disse “não saias de casa! se sais dou-te porrada!” Não, ele não mandou.. ele… pediu.
Ele manda mensagem:
- Estou ao lado da tua casa – e casa 2 se está corre à janela, toma banho, penteia o cabelo.
Mas entre esta e a segunda mensagem podem passar minutos… ou horas…
Ela não insiste, porque casa 2 não pede, casa 2 recebe.
Casa 2 não romantiza, disponibiliza.
Casa 2 não comenta, casa 2 senta.
Casa 2 não confronta, leva afronta.
Casa 2 não exige, agradece.
Agradece que no coração e na agenda deste homem haja um lugar para ela.
E na segunda mensagem pode vir uma provocação, uma promessa, uma insinuação.
E casa 2 vibra! E se não está em casa começa a pensar em regressar, fica nervosa no djob, encurta as compras ou termina o chá com as amigas, no ginásio desliga a máquina e já nem vai à piscina.
Para apaixonada este pode ser o momento alto da semana e ela corre para ele.
E em casa compõe a mesa, aumenta cerveja na geleira e talvez acenda mesmo uma vela.
E depois de 30 minutos, talvez 40 vem outra mensagem:
- Ysh, esse djob! Tou busy. Mas tou na tua zona, gostava de te ver.
E a desilusão da primeira parte da frase é largamente ultrapassada pela promessa da segunda. E casa 2 senta, e espera… durante toda a tarde o seu homem vai mantendo viva a chama, em promessas e sugestões, ela espera. Ele viaja amanhã talvez… espera.
E enquanto espera a generosidade de um minuto do seu homem, enquanto cancela jantares e não combina saídas, adia férias e lamenta fins-de-semana casa 2 fica assim, e envelhece.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Da confiança


No primeiro encontro ele chega com confiança. Olhos nos olhos, quase mão na mão:
- Sabes, nós os dois, eu e tu, ligamos. Não tens maneira de fugir, nós ligamos.
E depois com confiança o moçambicano organiza, convida, elogia, apresenta, baba...
Com os bradas falam sobre as relações e as excepções, sobre os ciúmes e os cortejamentos:
- Estás a dizer que ela não é ciumenta? Ela não é ciumenta porque está a concorrer para as eleições! Quando ganhar? Vai mudar, vais ver!
- Ya! Mulheres mudam quando casam! Aquela que tá lá em casa, quando éramos namorados – baixa um pouco o tom de voz e soletra - a-do-ra-va sexo anal, agora que casou dói!
- Ya, depois diz que italiano é que é romântico!
- Joana, diz lá, é verdade isso?
- Nada, Joana gosta é de moçambicano, eu sei.
- Nós sabemos.
– Estás a rir, fala lá! Só ri ela.
- Ah, vamos ler no xikwembo isso aqui!
- Fala, moçambicano é bom para cama né? Mas festinhas e beijinhos é italianos é isso? Fala pa…
- Mas sabes, isso é porque estás traumatizada com moçambicanos! Eu sou diferente. Eu não faço as coisas assim, não é verdade! Comigo vais apaixonar tu.
- Tas m’ameaçar?
- Nada, não preciso.
- Problema são rótulos! Sabes disso né?
- Ya! Porque mulher e homem, é culpa dos dois, quando namora ou quando casa, enfim, quando chega compromisso, as pessoas mudam!
- Ya, logo reclamam: “porque não fazes isso, sou tua namorada eu!”. E dizem “mas eu vivo contigo, é diferente!”
- Sim, é diferente, agora já não a vês quando queres ou porque queres, vês porque vive lá em casa, só!
- Sim, e cobram! Amor não se cobra! “Porque não me mandaste mensagem hoje?” e “como passas todo um dia sem me ligar?” E “não tiveste saudades minhas”… hiiiiii”!
- Complicam muito.
- Joana, amor.
- ?! O quê!?
- Sabes que eu gosto de te chamar de amor… não posso? Então vamos ver, nós aqui somos o quê? Eu e tu.
- Ui, tá a querer catalogar, não cataloga isso! Aí estragou!
- Nada, não é isso, é para sabermos que é!
- Ei, casamento é essa ideia, é falta de confiança casar, isso não é nice.
- Joana, tu sempre foste assim?
- Assim como?
- Confusa. Vocês pequeninas sempre são assim, mania que são duras! Amam mas são tuff não dizem! Tu tás a gostar de mim, mas não admites, armada em forte não dizes nada, mas vais cair, tu que me vais pedir em casamento tu!
- Mas então não dizias que os rótulos é que é mau?
- Joana tu tens de aprender uma coisa, gostas de ser selvagem né? Não me estás a confiar. Mas aprende que cada bom cavalo tem um bom jockey…

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Conheces?


Chatamos no facebook, trocamos sms, falamos mesmo no bar. Mas moçambicano não se conhece assim.
Jantamos na mesma mesa uma vez, no trabalho cruzamo-nos no corredor. Frequentamos os mesmos sítios e temos amigos comuns, mas moçambicano não se conhece assim.
Leio os livros e os jornais, oiço as músicas na rádio e vejo os shows nas praças. Mas não, moçambicano não se conhece assim.
Moçambicano conhece-se no toque insinuante dos dedos, na elasticidade macia da pele do peito, na cor limpa e brilhante das coxas.
Moçambicano conhece-se nos lábios grandes de beijos, nas mãos cheias de bunda, no sorriso branco de dentes, no tom grave do riso solto.
No papo… ah, moçambicano tem papo!
Não faz pergunta e foge a respostas. Mas diz, fala, elogia, insinua e não insinua no duplo sentido da língua portuguesa - que como todos sabemos é traiçoeira - não, não é nos sentidos dúbios das palavras que o moçambicano se alonga, é o triplo acento de um olhar que transforma um simples “bom dia” na excitante forma da quase obscenidade. Elogiosa, sempre. És quente tu, seja quem fores. E sentes isso num piscar de olho cúmplice, num afirmativo levantar de sobrolho. Acção que confirma, que convida, que dá.
Moçambicano conhece-se na investida pélvica de uma passada. Na frescura espessa e doce de uma Laurentina. Num gole de cerveja preta, claro.
Moçambicano conhece-se na dormência grossa que o piri-piri sacana deixa na língua. No som batido dos tambores, sim, no desafino da timbila.
É verão. Chove. E o moçambicano conhece-se no pingar grosso que aparece de surpresa, no sol forte que vem sem aviso. Na frescura do vento que despenteia cabelos e descobre pernas. No som do agitar das folhas dos coqueiros. No bafo quente do vento suão que de noite nos surpreende nuas.
Moçambicano conhece-se no “não” sempre ausente. No eterno concordar.
Moçambicano conhece-se no improviso, no desconseguir sorridente de cada tentativa. Moçambicano conhece-se na porta aberta da hospitalidade, no olhar directo do estudo. Moçambicano estuda, sim, olha para fora. Observa-te sempre, e o caminho que faz tem base no que vê, no que mostras.
Ah! e para moçambicano mostras, mostras sempre, é desarmante a generosidade do que aprecia, é cativante.
- Estás bonita hoje, sapatos vão bem com teus cabelos.
- ? Ah! Ah! Ah! - Moçambicano conhece-se na prontidão do papo, na doçura sempre dependurado nos lábios generosos, no desejo em reflexo nos brilhos molhados dos olhos, no esboçar constante de um sorriso nas faces.
Moçambicano conhece-se na água do coco, morna e suave como saliva.
Moçambicano conhece-se na doçura e maciez de uma manga madura. Na dureza aparente de uma massala, na acidez doce de um maracujá.
No corpo.
- Aquele rapaz que parece uma estátua era teu namorado?
Moçambicano conhece-se no desenho sinuoso dos braços, no redondo perfeito da nuca, na testa brilhante, no nariz redondo, nos lábios cheios. No peito desenhado, nas costas fortes de músculos curtos e duros, nas pernas atléticas…
Sim, Moçambicano conhece-se no prazer, é aí que se conhece.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

De onde és?


Regressei.
Sim, tinha saudade.
Saudade do bafo quente que senti logo que saí do avião; saudade do cabelo encaracolar com a humidade; saudade de uma Laurentina preta estupidamente gelada; saudade do calor insubstituível de dançar uma passada, saudade de dormir na esteira... home is were the heart is and I AM.
Viajei. Viajo sempre.
E não regresso igual. Nunca regressamos, não é?
Regresso cheia da luz branca de Lisboa e de bolhas nos pés das noites em pé do Bairro Alto.
Regresso cheia das perguntas “de onde és?”
Passeio pelos bairros mais castiços de Lisboa de mala na mão. Sou nómada, gosto de ser.
Combino com os amigos e conhecidos, reais e virtuais – quem sabe distinguir isso!? - jantares de convívio improváveis. Sou visita, gosto de ser.
E encontro os meus caminhos, cruzam-se no mapa, como se a globalização fosse isto. Isto de nos identificarmos aqui e ali, e em todo o lado levar palavras, trazer gestos, ser cidadão do mundo é isso afinal? Sentir maputo e Lisboa em tão grande… maningue connection!
Alongo-me ao sol nas esplanadas para o Tejo. Cidade bonita esta.
Em Lisboa by night:
- Where are you from?
- Mozambique.
- Come here, come here, take us a picture, African queen! - Mais tarte - Are you coming on Friday? I want to thank you for sharing with me your time and talent...I had such a great time...Most importantly, I enjoyed talking with you. Let´s dance the night away.
- We didn't talk.
- Yeah baby, let's get married and have two.
- Two?
- Yes, children need a partner.
E horas depois em Maputo:

- The hottest blonde I have ever seen! You know living is about expressing yourself and tomorrow what i feel will be over so i want to say it now! Carlos, very nice to meet you!

- Hello, Joana.

- Espera lá, Portuguesa!!!!!!!!!?

- Ahahahaha! Sim! Não… não sei! But nice English papo!
Online:
- Are you still in Lisboa? I had such a great time meeting with you... I was looking for you in Bairro Alto.
Papo em Lisboa está igual ao papo em maputo e se não é isto o aquecimento global então não sei o que é!
Lx by night:
- Estás com cara daquilo q me apetece.
No restaurante:

- Sabes, eu acho que animal selvagem é para domar.
- Nada, eu não sou machista.
- Podemos dividir a conta.
- Sim, eu vivi no Brasil, sei que vocês gostam de dividir as contas, aqui os homens têm a mania de pagar tudo armados em machos, não é? Eu não sou assim. Mas na cama mando eu. E sei que tu gostas!
Há uma saudade. Mas já nem sei de onde vem. O lugar mistura-se e encontramos a nossa tribo onde menos se espera. I am happy hoje. assim mesmo, misturando na frase as línguas e os feelings!
Regresso cheia das perguntas “de onde és?”
Eu isso já não sei, aceito que daqui, por muito xikwembo e xima que receba nunca serei. Lá sou a imigrante que chega com contacto do estrangeiro, sotaque e estórias estranhas para contar.
Não sou de lá. Nem cá nem lá, inbetween places, that is the secret.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Em todo o lado


No papo:
- Eu não sei cozinhar.
- O quê? Não sabes cozinhar? – ele está chocado, parece reflectir sobre o assunto, olha para o celular, olha para mim, pensa uns momentos e:
- Bom, mas podes aprender não é? A minha mãe pode te ensinar.
Em casa:
Eu não sei cozinhar. Mas sei misturar. Estou em casa e lavo umas coisas que depois misturo numa grande tigela, tempero, está feito! Ele chega, partilhamos a salada.
- Hummmmmm! Estava muito bom. Como anima chegar a casa e a namorada ter cozinhado para nós!
Na night com brada:
- Sim, tu és assim! Tuga, emancipada e feminista! Mania da independência vocês! Tu aceita moçambicano! Se não aceitas ir p cozinha não estás a aceitar africano por completo.
- Para cozinhar há empregada!
- Aaaaaaaaaaaaaaaaaah! Nada! Eu pelo menos final de semana não como comida de empregada!
No papo no bar:
- Sabes, eu sempre quis te conhecer.
- Ah é?
- Ya, tás com teus amigos, né?
- Ya.
- Ei, afinal são voçes? Mano como é tdo nice? ya.... ya.... Joana, falamos depois... xau.

Na disco:
- Joana, como é que tu demoras uma hora de tempo para ir no quarto de banho?
- Ei, voçe! Estás-me a controlar?
- Ah achas q estou? Então já agora quem é esse americano com quem falaste?
Conversa com brada moçambicano:
- Sim, eu conheço tugas! Eu vivi com uma portuguesa durante três meses e separámo-nos por causa da maionese!

- Da maionese?

- Minha vida com a portuguesa acabou assim! Ei, eu gosto de maionese! Ela pôs a mesa, e eu gosto de maionese nas minhas chips. Não tinha. Eu disse “Amor, tu sabes q eu gosto de maionese. Tu sabes. Porque não compraste, afinal?”

- Bem, esta estória da maionese! Desculpa m’lá!

- Não, mas tu não o conheces, ele gosta mesmo de maionese. Eu lhe conheço há maningue e sempre ele come chips e tem o frasco da maionese aqui mesmo ao lado.

- What? Mas a questão não é se ele gosta ou não! Se gosta pode comprar!!

Na night seguinte:

- Então, tua dama?

- Minha dama tá em casa, mas eu falei que vou sair só por uma hora.

- Mas já estamos aqui há 3horas.

- Sim, mas eu daqui a nada vou começar a preparar-me para quando chegar a casa ela me perdoar por eu ter demorado mais horas do que eu disse.

- Vais fazer mata-bicho e lavar na cama?
- Ei, eu não entro na cozinha!
Ao telefone com a brada sul-africana:
- Vamos ver um show hoje?
- You know… we can go, but my husband does not like me to go out…
- What? Mas e tu, gostas?
No concerto com a brada portuguesa:
- Sabes, eu já vou embora.
- Já? Mas amanhã é sábado!
- Sim, mas o meu marido já está a mandar mensagens.
- E então?
- Sim, está a pressionar-me, ele não está a gostar que eu esteja aqui.
- Mas e então? Tu estás a gostar?
- Sim, mas sabes, é melhor ir, eu vou mesmo para falar com ele, ele não me faz mais estas coisas.
Na rua com dama moçambicana:
- Aquilo que estamos a viver lá em casa ninguém há-de saber, cozinhar para ti? Eu posso. Lavar? Não tem problema. Mas agora, tua vida é tua vida, fazes o que tu quiseres. Saímos de manhã, até apanhamos mesmo chapa, mas saímos paragens diferentes, entendes né? Cada um na sua rota a partir d’agora.

Entendo o statement da mana, mas sabendo o que sei hoje na verdade acho que o que ela dá é tudo – cozinha e lava. Duvido que o damo se preocupe com a rota do chapa.
Entendo a estória da maionese, mas sabendo o que sei hoje o que me espanta é que tenha sido esta a razão do rompimento.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Moçambicano, prova de água


Hoje está calor. Acabou o Inverno aqui.
E se chamamos inverno ao vento Suão, abafado, que me despenteia os cabelos e me descontrai os músculos, então eu gosto do inverno.
Aprendi há muito sobre a relatividade das coisas, aprendi as bases, e aqui, todos os dias recebo e as lições que aprofundam esse sentir.
As emoções e as temperaturas. Para mim estão ligadas, e a memória do corpo está aí, entre as imagens, os sabores e os cheiros.
Para mim era assim. Natal é frio, geadas, neves, lareira acesa. Carnaval é chuva, máscaras vestidas por cima das camisolas quentes, por debaixo dos casacos. Tristeza é chuva e frio, e dias na cama debaixo dos cobertores. Mãe é chá de cidreira quente e avó café de saco feito à lareira. Teatro é corrente de ar. Escola são choques térmicos. Amizade feminina é primavera, saladas e sobremesas doces. Amor tem a cor das flores de Maio. Sexo é tarde de calor, cheiro a maresia. Coração partido é chocolate quente e liberdade é… África.
Em África tudo muda. Eu mudei. E já vou sabendo porquê, os meus guias estão aqui.
Só agora sei a que cheiro e qual é esta temperatura. A temperatura da liberdade.
Combinamos encontro, temos compromisso, há estreia, é hora de inauguração, dia de cerimónia, última hora para assinar contrato, entrevista de emprego, boys night out… não importa, não importa o plano. Chove – está cancelado. E para o moçambicano não é preciso maior argumento do que esse. Estamos à espera do Fred e mesmo antes de se pensar em ligar para ele sabendo das suas razões para este atraso já avançamos:
- Sim, está a chover. Nem deve vir, ele.
- Mas para mim também chove e estou aqui.
- Sim… mas trânsito? Ysh! Não dá. Eu entendo, ele… ei, joana tu sabes, com chuva não dá.
- Mas somos iguais, se para nós deu…
- Nada nós é diferente, eu pelo menos quando estava a sair de casa não chovia. Hehe, com essa chuva eu nem tinha saído de casa! Nada. Chuva não é bom.
Moçambicano não gosta de chuva.
Eu também não.
Já adiei divórcios e recusei noivados, porquê? Porque chovia.
Quando chove as distâncias parecem maiores, a estrada mais suja, o trânsito mais lento, e em dias de chuva moçambicano não djoba, gazeta.
Hoje está sol, está calor e moçambicano… reclama que com essa temperatura não se pode trabalhar!

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Corpo sabe


Não consigo mandar msg
A saudade é uma memória do estômago, dizias tu em tempos.
Toca o celular, atendo um número que desconheço. Do outro lado uma voz, não sei quem é mas a sensação é boa, sabe-me a atenção esta voz, soa a conforto, não a reconheço mas o meu corpo tem memória… ele reconhece.
É quando reages ao ouvir a voz de alguém que amaste, voz que não sabes que lhe pertence… é aí que vês que esquecer não é uma opção…
Nunca usei esta frase porque nunca entendi bem onde pode ir a ideia, não sei bem se concordo, se discordo… mas na verdade sim, saudade é memória… e no estômago tenho as sensações mais fortes.

Enjoyar casa nova. Sem pressa. Ler uma frase de um livro antes de o arrumar na estante. Descobrir roupas que desconhecia, encontrar fotos que esquecia. Ouvir música sentindo nela novas camadas de emoção.
Nos intervalos escrever. Bebericar chá e deixar o açúcar de passas desfazer-se na boca.
Ocupar o espaço lentamente, como se decidisse com ele onde posso ir.

Escrevo com vista para a água, só agora reparo que do outro lado da rua, na casa em frente vive um pastor alemão, é dele o ladrar que me leva de volta a memórias…

Arrumar coisas é isso, lidar com memórias, cada objecto tem uma estória, cada um me leva a diferentes zonas da mente. E do corpo.

E nas arrumações há…
Há sempre umas malas e uns sacos que esvazio quase sem lhes tocar, coisas difíceis de arrumar, que me obrigam a pensar, que me fazem decidir, aquelas coisas inúteis mas que não deitamos fora, ou aquelas importantes mas que perderam seu lugar definido dentro de uma casa.
E sempre que arrumo roupa sonho com o dia em que terei a capacidade de usar apenas uma coisa, como os monges tibetanos com as túnicas laranja. Usar apenas isso, sempre.
Pergunta o meu lado consumista onde se poderá comprar uma… terei de esperar por vidas mais espirituais para isso. Arrumo.
Estou cansada de estar em casa, vou tomar caipirinhas com as amigas e jantar com os amigos. Oiço as estórias de África nos tempos coloniais, as estórias do mato, das caçadas, de mangusses e impalas de estimação, as estórias de dentes de elefante rendilhados, de mansões de 11 quartos e três famílias de criados. Estórias de militares violadores, de militares galanteadores em bailes nas boites do Polana e do Girassol. Estórias de pedidos de casamento e planos de fuga, estórias de amor de mais de 30 anos, estórias vivas ainda nos olhos das pessoas, na memória dos seus corpos.
Depois do jantar vou beber uma bebida num dos talhos da cidade, e o contraste entristece. Não que o mundo não seja uma maravilhosa diversidade de possibilidades, não que julgue o que se passa, mas que sinto cá dentro do peito saudade de fazer amor. Sim, sinto.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Pão não


3 de Setembro, zona continua calma, ligo para o serviço mas a tal greve é de três dias, hoje ainda nada. Recebo sms na mistura linguística habitual:
“What a week, take care, the city wakes little by little, somes chapas work, but lots of military in bairros, let’s hope for melhores dias.”
Um homem andrajoso remexe o contentor do lixo, encontra um saco de plástico que abre, põe a mão lá dentro e começa a comer, eu perco o apetite para mata-bicho.
Hoje tudo se confirma calmo e eu preparo-me, mesmo antes de sair toca o celular e avisam-me “careful, vai haver distúrbios a partir das 12 horas”… apesar disso saio à rua, tudo parece normal, mas nos ATM não há dinheiro, nas padarias não há pão, e no supermercado indiano tudo está meio fechado com grade. Os donos nervosos vigiam tudo. É estranho estar sozinha, de cesto na mão, a pensar se devo ou não rechear a casa de mantimentos para um mês. É estranho fazer fila para escolher coisas num país onde pode rebentar a guerra. Mas em qualquer país pode rebentar a guerra… Fico-me indecisa nas prateleiras que devo escolher… massas? Sim, decido-me por isto.
Saio para usar a internet, funciona. Na pastelaria encontro os conhecidos:
- Vinhas comprar pão?
- Eu? não. – reacção um pouco nervosa, quase envergonhada. Por querer pão? Como se a causa de toda esta confusão fosse de facto o pão!
Eu ainda pergunto ao balcão, por curiosidade:
- Tem pão?
- Nada, não temos.
Viajo na internet, e só sei que os distúrbios na cidade me ocupam mais do que pensava porque estranho no facebook os status de outros amigos, que falam alegremente da família, das férias, do amor… nestes últimos dias em maputo não se compra, não se ama, não se briga, não se estuda… vive-se e respiram-se os tumultos, apenas isso.
Muitos amigos estão preocupados, alguns que aceitam a sede de sangue dos media europeus como verdade, outros que conhecem África e sabem que pode tudo mudar…
Não deixam de me passar pela cabeça as estórias e relatos de outras pessoas e de situações semelhantes, com ou sem desfechos pacíficos.
Desligo o computador, na saída o conhecido está de volta e pergunta ao empregado baixinho: - Tem pão?
- Ainda. – ele sobe o tom de voz:
- Então mas não era dentro de uma hora que havia?! – eu passo por ele na saída:
- Então sempre querias pão!
Eu volto para casa, arrumo.
É inevitável pensar. E sentir como é bom dia para namorar, como seria bom, ficar aqui, agora, apenas abraçado. Sinto-me só entre as minhas coisas vividas.
E na verdade agora de repente, eu que raramente como pão até me apetecia… apetecia-me.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Papai governa


Sonhei que África era abençoada. Não só pelo clima, pela beleza, pela fertilidade, pelos espíritos, djin e xikwembo...
Conheço um bocadinho de África: os grandes desertos; as águas doces, turquesa; os países de gente esquecida pelo petróleo; os lugares das cegueiras de diamantes; os da riqueza exuberante dos barões e… os da pobreza absoluta. Selva e beleza.
Sinto uma comichão no peito. Pequena, suave, quase nada, toco ao de leve com os dedos, olho e vejo uma formiga minúscula, está quase colada à minha pele, toco-lhe de novo para a tirar, apenas para a mudar de lugar, mas a minha força é difícil de medir com um ser tão pequeno, esmago-a. Fico a olhar para o meu dedo e balbucio um “Om Shanti”, não era minha intenção…
Dia 2 de Setembro. “O paish vai ardher” já não é premonição, é descrição. Amanhece e eu continuo com a sensação morna de um feriado de verão. Mas um feriado estranho. Há poucas pessoas na rua, caminham lentamente, os carros passam solitários de hora a hora. A baía está serena, oiço chorar o bebé do prédio vizinho e ao longe – tiros! Ainda. Ainda não acabou. Dizem-me que nos bairros mais periféricos se sente a tensão de quem prepara o plano e espera a oportunidade.
Sonhei que África era abençoada por mais do que lendas, mistérios, calores e desejos.
Diz quem viveu os tempos que a fila de pão hoje lembra as filas do abastecimento, “longa, esfomeante e cansativa”.
Recebo nova sms “Defunto foi transportado de txova por falta de carros disponíveis no hospital, passou na avenida Julius Nyerery. Places de food encerram after sunset. Ruas pertencem aos peões. Falta de gasolina, pão, água. É este o update às 20h30”.
No noticiário em Portugal declaram que estão de volta os tiroteios às ruas de maputo. A família telefona preocupada. Na minha rua nada se passa, tudo calmo. Aquela calma estranha que parece segurar em suspenso as energias, calma que acama os ânimos. Calma que antecede as agitações. Há mais de um ano que vivo sozinha em Moçambique, sempre me senti bem mas agora… não me sinto muito segura. A casa nova é grande, vazia… hoje sinto-me estrangeira.
O vizinho na varanda ao meu lado escreve o computador Mac e fala ao celular em italiano, tem um ar nervoso.
O vento forte faz bater as janelas, os cães ladram, mas eles não sabem o que se passa. Pois não?
Sonhei que África era mais generosa, como são a mãe natureza que ainda nos governa os dias.
Sonhei que África era abençoada por mais do que generosidade das paisagens, dos animais, das tribos… mais que músicas, frutas, mariscos, praias…
Sonhei com o dia em que África é abençoada por governos também generosos, que não precisam de ler no discurso escrito a palavra “condolências”.
Um governo que viva com o povo e não com medo deles, e não em relação paternalista de castigo, ou de dono para seu cão, nos reforços positivos para ensinar a obedecer. Um governo que seja pai, porque assim na verdade eu cá sinto-me órfã!

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Moçambicano tem papo, mas… II


Ser ou não ser, em moçambicano.
Aqui, em geral, não se ouve nunca um não, é muito raro.
E isso parece bom? Generoso? Concordante?
Não é.
Estou em casa. Ele senta-se, nervoso. Há dias que age de forma estranha, há tempos que foge, há semanas que pouco ri, nada dança e mal beija. Amor faz mecanicamente e o seu olhar fala muito de deveres e pouco de prazeres. Depois de um mês de fugas, e sob pressão, ele começa finalmente a falar:
- Sabes?... eu… não me sinto bem… eu… não consigo falar sobre… o que sinto… e embora me sinta assim há… muito tempo… só agora que estamos… aqui… consigo dizer-te que… eu… não consigo dizer…
Parece um excerto do teatro do absurdo? Poesia? Simbolismo.
Não é. É a pura realidade.
Sim, dizem que eu vivo em fantasia mas é a realidade que é assim!
A questão é que moçambicano não fala.
Esconde, disfarça, reprime, representa, finge, mente.
Não gosta de dizer que não e aceita quase todas as outras opções.
- O que é que tu fazes?
- Sou actriz.
- Sim, eu vi-te num DVD de uma peça de teatro aqui! Nice.
- Sim, a joana faz parte do 1% da população que fazem aquilo que gostam.
Duas coisas engraçadas, a primeira é que ninguém imagina que eu possa fazer teatro e não gostar. A segunda é que seja extraordinário, quase revoltante – sentimos muitas vezes o tom áspero do comentário – que alguém possa fazer aquilo que gosta.
E para mim tudo isto se prende com o Ser.
Não sei se sou só eu que vejo isto, mas parece-me que o mundo anda virado. Ou então é o verdadeiro sentido da vida que me escapa! Vivo para quê afinal? O grande objectivo de uma vida não é a felicidade? A minha, a dos que me rodeiam, a do mundo e da sua tão esperada paz?
Não é isso?
Ok, então vivo mesmo num mundo paralelo.
Mas desconfio que seja apenas na prática que isto possa chocar alguém. Porque em filosofia, em ideia todos concordamos, mas é na prática que me chamam, a mim!, utópica… não entendo.
Diz-me a minha mãe que eu me dou demasiado, que me exponho, que mimo, que cuido, que amo. E que devo ter cuidado porque as pessoas não merecem, que cada experiência devia ser uma aprendizagem do que devemos e não devemos fazer. Que eu devia guardar-me, poupar-me…
Mas para quê? Para quem? O Outro não merece ser amado? Seja quantos tenham sido os que falharam, não merecemos nós, tentar de novo? Amor não gera amor? E não receberemos mais tarde ou mais cedo aquilo que damos?
Sim, respondem-me, em teoria estamos de acordo contigo, mas na prática não podemos agir assim.
Como!? Para que serve então esta teoria?
Penso no teatro, na famosa frase “ser ou não ser”. Engraçado, esta questão é colocada como se fosse de facto uma opção!! Penso no desafio do teatro e parece que só agora entendi o verdadeiro significado desta questão… como chamá-la? Filosófica, diriam.
Mas cm’on? Filosofia? É das mais pragmáticas que conheço!
Pensamos e queremos: just be.
Mas é tão difícil ser…
A questão não é se devo ou não ser, a minha questão é se consegues, alguma das duas coisas. Porque neste caso há apenas dois tipos de pessoas, os que são e os que não são.
Mas, posso acrescentar outro? Há os que gostariam de ser.
Eu adoro Moçambique, e no coração sinto-me moçambicana, mas aqui se vê que não sou de cá porque eu… eu pelo menos tento!
Talvez me repita na ideia, mas já imaginaste que o que és pode ser muito mais interessante, cativante, apaixonante que o que tentas ser? O que imaginas que os outros querem que sejas?... Abre os olhos, isso não importa. Apenas sê tu próprio, e isso ninguém te pode tirar. O resto? O resto encontra-se nas novelas e copia-se das músicas pop.
MOÇAMBICANO VERDADEIRO PRECISA-SE.
Quem estiver disposto a ser pode contactar-me.
Kanimambo.

sábado, 28 de agosto de 2010

Moçambicano tem papo, mas…


Sim, sei que é tema recorrente aqui em meu xikwembo, mas intriga-me… como pensam os homens moçambicanos. Porque é tão difícil encontrar verdade?
Não falo de verdade como se fosse falasse de coisa absoluta e unânime, universal… ou sequer mensurável.
Falo da verdade de cada coração, só isso. Da personalidade única de cada mente, da expressividade inimitável de cada corpo.
Não falo de romantismo, de copiada declaração da mais popular novela brasileira, da repetição mecânica do modelo monogâmico católico europeu, da abstinência americana, ou do celibato budista…
Nada, falo de ser. E assumir.
No passado Domingo, 22 de Agosto aquela hora das 18 recebi esta “carta de manifestação de interesse”, que transcrevo ipsis verbis:

«Yah, isto vai ser simples. Nada de palavras difíceis ou de frases falsas. Isto não é uma carta de amor. Isto é o que eu sinto. E aqui não te vou dizer que és linda, ou que brilhas, ou que és o centro do meu planeta. Não. Não vou falar-te do céu azul, dos raios do sol ou da lua, nem de pássaros verdes a voar, ou de borboletas num girassol, nada.

Até seria muito engraçado, sabes. Dizer que o teu sorriso é cor-de-laranja, que quando estiver contigo até as noites mais escuras ficarão coloridas, ou que mandei lixar todos os meus livros de cabeceira para ler em regime de exclusividade aqueles teus textos naquele jornal verdadeiro...

Não perderei tempo procurando palavras para descrever aquele teu olhar. Sim, naquela foto. Como é que se diz numa carta que os teus olhos ficam muito mais bonitos quando parecem estar a olhar para mim?! Yah... Ou que quando falas, e a tua voz ainda sequer a ouvi, que quando falas é como se eu estivesse a ouvir a minha balada favorita a partir da voz da cantora preferida da minha cantora preferida... E como eu diria numa carta que te encontrei assim, do nada, como se encontra uma flor no deserto do Sahara facebookiano?!

Palavras para quê, se não sei usá-las?! Faz-me mais feliz o que sinto ao escrever para ti do que o que eu escrevo para ti. Não entendeste, né? Nem eu... Mas esta incompreensão mexe comigo de tal forma que tristeza parece ser tudo o que vejo quando afasto os meus olhos dos fascículos de imagem, texto e som que me chegam de ti, a partir daqui do Facebook. E daquele jornal...

Sabes, Joanita, agora eu já nem sei se tenho um coração ou um cofre, onde guardo o melhor de mim. Para ti. Amor? Não sei. Sabes tu o que é isso de amor? Eu não, mas deve ter sido isso que me tem guardado para ti, este tempo todo...

Queria roubar o teu coração como ladrões roubam celulares num paragem de chapa, sabes? Ou atrair-te para mim como bêbados são atraídos por barracas lá do Museu!!!

Juro. Mas eh... É melhor eu parar por aqui, antes que abale as estruturas da fundação da tua relação vigente.»

Que dizer? Gosto particularmente da ideia do coração roubado como celular, da atracção como dependência de barraca… gosto do que sabe a verdade mesmo que seja insípido, inseguro, breve… disparatado até. Principalmente o disparatado.
Sim, moçambicano fala, fala, fala… moçambicano tem papo… mas?

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Hei-de vir!


- Amanhã tenho cena às nove horas, posso levar teu carro?
- Ya, podes, na boa, mas às 12 tás aqui, ok? Tenho djob às 12 horas.
- Ya, tá nice.
- Às 12. Não “aquela hora das 12”, mesmo 12!. É djob novo hã, não quero atrasar eu, ok?
- Na boa, hei-de vir 12 horas.
- Tou pedir a sério ok? É importante para mim, boss novo, sabes como é.
- Ya, sei não tem problema, hei-de estar.
- Mas tu não vais aquela cena que estão teus bradas? Vê lá, vais querer ficar no papo, vais atrasar, ysh melhor não levares, né?
- Nada, eu venho. Na boa, não vou falhar.
São 11h45 e eu faço a chamada, o telefone toca, toca, toca, mas ninguém atende. Hum… em Moçambique quando não atendem o celular tudo aquilo que estava combinado, seja contrato ou casamento, fica em questão. Não atendeu… ysh… aha wenna! Ok, plano B, envio mensagem. Passados 10 minutos ele liga.
- Alô.
- Desce, tou aqui.
- Ok.
Calço os sapatos a correr, fecho a porta, a grade, os cadeados, desço. Não está ninguém cá em baixo.
Eu espero.
Espero.
Espero.
Espero.
Espero.
Por 20 minutos eu espero.
Porquê?
Quando combinamos alguma coisa todos nós podemos escolher não falhar, se temos dúvidas, impossibilidades, compromissos, falta de vontade, desinteresse – qualquer razão para não cumprir o combinado podemos avisar. Ou não?
Mas moçambicano não gosta de dizer que não, de contrariar, de mostrar que não sabe, não quer, não gosta, não tem certeza. Moçambicano gosta de dizer que sim, afirmativamente ele aceita. Ainda a pergunta vai no meio e ele já acena com a cabeça “Sim, sim!”, concorda, muitas vezes até sugerindo possibilidades, definindo pormenores. Mas depois, invariavelmente, atrasa, falha, falta, esquece, engana, desleixa, gazeta, desprograma, mente…
E se insistes no combinado, se alertas mesmo para que se há problema com aquela data, aquele horário, determinado local ou actividade podemos mudar é rápido e afirmativo nas confirmações e pode até zangar com a tua desconfiança sobre o seu cumprimento de horários.
Mas depois… mesmo que esteja a sair da casa em Belo Horizonte e fale com quem o espera numa rua da baixa ele diz: “estou aqui”.
Em Moçambique “aqui” é especificidade de lugar indeterminado, mas distante. E a expressão “vir” é verbo para sempre incompleto.
A própria expressão muito comum “estou a vir” é contradição em si própria, como se pode “estar a vir”? Só podemos estar a ir… acção ainda não concluída!
Mas no fundo, como a maioria das expressões usadas em Moçambique, é expressiva esta forma, bem mais que o português comum a que eu estava habituada.
O estrangeiro que conheça o português que se fala em Portugal e chegue a Moçambique pode por algum tempo acreditar que aqui não se fala “português correcto”, mas desenganem-se, o português é correctíssimo, e o que parece um erro é apenas expressividade linguística de um pensamento de outro modo oculto. Na expressão “hei-de vir” por exemplo, está bem presente a ideia que está por detrás - invariavelmente o que a usa pensa para si: “posso atrasar mas sempre hei-de vir”.
Moçambicano não chega, moçambicano atrasa.
Mas aqui não falo de horas, de relógios, de questões culturais, de questões de produção nacional ou organização governamental, falo de respeito.
Entre duas pessoas comunicar é conseguir pôr-me na pele do outro, sair de mim por um momento e no outro sentir a hesitação, a compreensão, a dúvida, a incredulidade... sentir o que ele sente.
Atrasar é dispor do tempo do outro, e isso não é um direito meu.
Atrasar é dizer que o tempo do que espera por mim é menos valioso que o meu.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Desaparecida, viajaste?


Sim, viajei.
Porque moçambicano não se desloca em trabalho, não faz férias, não sai no fim-de-semana. Não, moçambicano viaja – só, seja a deslocação intercontinental, para o estrangeiro, para as províncias ou apenas para fora da cidade de maputo.
Viajamos para o estrangeiro e viajando ele é outro. No estrangeiro tudo é diferente.
No estrangeiro moçambicano bebe água de coco, mas é porque é mais fresca.
No estrangeiro caminha na calçada da marginal, mas é porque é mais limpa.
Exercita o corpo mas porque é moda que todo o mundo segue.
Paquera a mulata, porque ela aqui é estrangeira.
Fotografamos.
- Ei, deixa ela tirar as fotos, ela é fotogénica.
- Mas…
- Sim, tira boas fotos, deixa ela fotar.
Sim, moçambicano é fotogénico.
Todos sabemos Moçambicano não gosta muito de horários, mas a verdade é que o avião não voa aquela hora das 17. Voa a hora exacta, precisa, sem esperar por ninguém, sem querer saber dos problemas de transporte, de família, de rancho ou de malária. Por isso moçambicano em viagem sofre.
Chegamos ao aeroporto e aqui em casa os conhecimentos ajudam, agilizam, facilitam. A sala de check in está lotada mas facilmente se comunica com o brada ao balcão e com a connection na direcção, aqui em casa não há problemas.
Mas fora do ritmo descontraído de Maputo o caso já é diferente, chegamos a Lisboa e atrasamos no tempo. Depois de várias tentativas finalmente estamos todos, todas as malas, os passaporte, os bilhetes. Mas somos muitos. E sempre algum de nós quer ir; comprar revista, tomar água, ir ao banheiro, fazer chamada, paquerar estrangeira. Mesmo depois de longas esperas e depois de todos prontos na sala de check in ainda falta algo. Moçambicano desconfia de aeroportos, de funcionários, de transporte de malas e scanning de sacos – moçambicano não leva saco assim desprotegido, nu. Nada, Moçambicano “emplastica”.
Ok, depois de 40 minutos e seis malas enroladas em plástico cor de laranja estamos prontos. Estamos sentados frente ao painel de check in, aparentemente pouco alerta para o facto de que estar ali não adianta muito, é preciso fazer o check in! E só passado quase uma hora de papos e estórias sobre a política, os teatros e as autoridades de Moçambique só aí nos apercebemos que é melhor avançar. Avançamos. No balcão, na habitual formulação frásica formal de Portugal, com cara fechada somos admoestados como crianças:
- Meus senhores gostaria apenas de alertar para o facto de que o horário limite para o check in é uma hora antes, têm agora sete minutos para o fazer.
Embora o funcionário até tivesse razão não pude deixar de notar que nem todos foram tratadas desta forma... e que mesmo eu, inserida neste grupo, recebi um sorriso.
E como viajamos em grupo em geral um de nós leva todos os documentos, que entrega juntos, identificando depois cada um de nós à medida que passamos. E não pude deixar de notar que invariavelmente consideram que eu estou no grupo errado. E isto eu não entendo, porque acham que isso de se moçambicano, em Moçambique ou no estrangeiro, se distingue na cor?

sábado, 31 de julho de 2010

Felicidade de dono

Passeio na marginal de maputo, à minha frente um carro avança muito lentamente. Lá dentro um homem dirige, ao lado vai sentada uma mulher. Comenta o meu acompanhante:
- Aquele ali, tá a passear mulher de dono!
- Como sabes? Tu também és confuso! Pode ser mulher dele.
- Nada, tua mulher não passeias assim! Assim a demorar viagem? Parece a abrandar para ver ondas, sol, essas coisas, nada! Mulher de dono essa! Vai a namorar esse.
- Mas só se namora com mulher de dono?
- Ya, acorda lá John! Com esposa mesmo, NADA!
No restaurante um casal numa mesa, estão abraçados, trocam segredos e risinhos, estão sentados do mesmo lado da mesa:
- Já viste? Como é que duas pessoas se sentam do mesmo lado numa mesa? Nem se consegue falar. Não entendo essa cena, c’mon!! Nem se pode comer assim! Esses dois são game esses! Não são nem namorados!
No concerto eles chegam atrasados, aparecem os dois, abraçados, riem. Os amigos observam, com sorriso forçado. Ele sai para ir ao banheiro, volta para trás:
- Sorry, já me esquecia de beijar a minha namorada. – beijam-se e riem ao mesmo tempo – Volto já!
Os amigos segredam:
- Esses aqui, estão a showofar! Eh pá, tenho mulher eu, mesmo com ela não faço essa cena! C’mon, na rua??
- Ya, essa eu conheço, sabes, eu até acho que essa aqui tem esse namorado só para showoff, porque eles como ficam assim em posster, nada, isso não é namoro isso!
Conversam entre amigos, vários casais:
- Vamos lá sair hoje brada, um jantar nice hoje.
- Ya, convidamos os pombinhos? Hehehehehe!
- Aqueles dois? Nada, não quero. Nem fica bem! Até me sinto mal com aqueles, parece que só eles é que se amam, é preciso aquelas coisas?? Ah, nada! Minha dama até fica a olhar para mim numa de que EU é que estou a falhar! Quero jantar normal, com pessoas normais! Esses ainda vão-nos separar!
- Man, também estás a abusar!
- Ei, nós temos problemas! Toda a gente tem, né? Não tens, tu?
- Ya, mas eles estão felizes, tão nices, deixa enjoyar! Eu até gramo de ver!
- Man, aqueles vivem como se não houvesse problemas, não gosto!
És feliz, estás apaixonado? E é daquelas paixões que se vê? Caminham os dois de mãos dadas? Abraçam-se? Trocam palavras que mais ninguém entende? Vê-se que se amam nos olhos brilhantes? Os gestos entre vocês são lânguidos? Os sorrisos cúmplices? Soltam gargalhadas e continuam mesmo quando toda a gente já mudou de assunto? Gostam de sair juntos, de dançar agarrados? Trocam nomes carinhosos em público? Desaparecem juntos em programas a dois? Pior, beijam-se na rua?
Cuidado. Felicidade de dono é para guardar.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Em processo


Sento-me na esplanada e peço um chá. Demora:
- Desculpe, pai, esqueceu meu chá?
- Não… está em processo. – mas demora, quanto tempo pode demorar a fazer um chá? Penso eu para mim.
- Desculpe, meu chá, esqueceu?
- Não, problema é que o processo está com problemas porque… não temos.
- Não tem chá? Mas porque não disse há muito tempo?
- Não… situação é que no nosso processo, máquina de fazer café está avariada.
- Mas eu pedi chá, pai.
- Sim, mas nós fazemos com aquela água quente da máquina por isso…
- Mas pai, permite uma pergunta? Pai na sua casa tem dessas máquinas?
- Não tenho.
- Mas bebe chá?
- Sim, bebo chá.
- Então?
- Mas esse não é processo aqui, não podemos fazer.
- Paiée! Vai lá na cozinha e pede chá.
- Assim mesmo de aquecer no fogão?
- SIM!
Sim, “está em processo” é frase muito usada.
Ok, é oficial eu mesma também estou em processo.
Pensas no que pensas significa. A tua mente mente? Bebes para esquecer? Mentes mesmo sem saber porquê? Sentes-te mais importante quando tens mais dinheiro? Mais amada porque tens mais pitos? Mais bonita por ter cabelos da índia, ou unhas de gel? Mais respeitado por ter filho? Mais boss por ter empregados? Mais inteligente por teres PHD? Mais reconhecido por apareceres na TV? Mais eloquente por usares palavras mais difíceis? Mais culto por viajares para o estrangeiro?
Ya, eu também, às vezes. Mas eu estou, oficialmente em processo. Como o chá.
E todos sabemos o que “em processo” significa, todos o ouvimos quando fazemos o pedido naquele bar que fica full à sexta-feira, ou quando pedimos coisa fora da lista num restaurante onde não nos conhecem, quando deixamos papéis a serem fotocopiados nas bancas da rua ou quando esperamos de resposta da migração ou pelo B.I. no ministério - está em processo – ou seja, demora, demora muito, é assunto ainda nem introduzido, nem a ser começado, quanto mais processado! Foi pedido, mas nos caminhos do processo que não processa não sabemos mesmo se será alguma vez concluído.
Em também estou, em processo interior.
Mas se… então, em país onde processo nada processa, hummmm, não é melhor eu ir?

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Cuidado com a paixão


Dizem-me que estou apaixonada.
E que isso não é bom.
Dizem-me que em todo o mundo corrupção é corrupção, que aqui como em qualquer parte traição é traição e mentira, mentira é!
Como todos os que estão apaixonados a África eu perdoo tudo. E o que condenaria no país onde nasci aqui acho graça, sorrio, relativizo. Sou apanhada nas armadilhas do pitoresco, do exótico, da novidade.
Ok, e se pensar em escrever sobre África sem falar no céu azul e na água transparente? Sem falar no sorriso aberto das pessoas. Sem elogiar a calidez da temperatura e a doçura das frutas.
África tem outro lado. Eu experimento-o com os olhos no prazer das doçuras mas na verdade também marcam os vergões dos caminhos duros do terreno.
Agora é só escolher o tema. Dos feiticeiros aos envenenamentos, das doenças às drogas, das violências, aos roubos, raptos, agressões. Do trabalho infantil e dos abusos das crianças. Abusos cometidos pelos pais, pelos tios, pelos amigos. Das excisões e das castrações. Da hierarquização das relações onde só importa o doutor e se pisa o pescador.
Sim, África é dura, que fazer?
As crianças carregam água na cabeça desde os cinco anos de idade. Em muitas escolas não há carteiras nas salas de aulas e as notas nos exames podem ser compradas ao professor, por dinheiro ou favores sexuais. Nos lugares mais isolados os meninos com deficiências ainda são mortos e os albinos são alvo de descriminações, chacota, feitiçaria.
Empresas poderosas em Moçambique obtêm licenças especiais do Ministério para trabalhar libertando gazes nocivos para a atmosfera. O lixo acumula-se nas ruas da cidade e podemos ver pessoas a comer directamente dos contentores. Nos hospitais morre-se por interesse de agências funerárias. Crianças são raptadas ou vendidas pelas famílias para prostituição na África do sul. Trabalhadores são explorados com maus salários e desumanas condições de trabalho. Famílias doentes de HIV sida são impedidas de tomar medicação por questões de descriminação, de condição económica, de prepotência familiar. A corrupção verifica-se em todas as áreas do poder, desde a mais simples operação STOP. Não existem condições de transporte, os poucos chapas trabalham sem condições, sem segurança, sem horário. Nas famílias a tradicional poligamia é escondida em nome da correcta atitude cristã. A crença nas medicinas tradicionais é criticada nas suas virtudes e muitas vezes seguida nas suas maiores mentiras. Na maior parte dos prédios os elevadores não funcionam. Os ratos correm pelos corredores, a maioria das pessoas não tem água canalizada. Em muitos dos prédios de maputo cozinha-se na varanda, em fogão de carvão, as meninas da casa descem ao rés-do-chão para pilar o milho no parque de estacionamento das traseiras onde durante a noite pessoas urinam e defecam. Crianças pedem nas ruas, nos semáforos, dormem ao relento, sem escola ou família. Mulheres são vítima fatais de violência doméstica. Empresários dos mais ricos vendem electrodomésticos recheados de droga, vivem em vivendas com mais de nove quartos com parque de estacionamento para mais de vinte carros…
A lista podia continuar.
Todos temos relações com o outro, com o ambiente, com os objectos, com os sons, o céu e a luz do sol. Todos caminhamos envolvidos nos elos das proximidades e nas cerimónias dos afastamentos. A vida e isto, entre os movimentos de aproximação e afastamento.
Eu vivo aqui, e o meu olhar será sempre o de estrangeira. Falo apenas do que me toca, do que me aquece os dias.
Todos sabemos da nossa área de presença, de ser, de estar. Todos sabemos.
Moçambique revela-se, e para mim neste momento é casa e como em todas as casas, começo a pagar o castigo da familiaridade.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Moçambicano lova?


Com as bradas:
- Ela estava na festa e estava a falar com aquele que é meu pito que foi comigo… bom, nem é meu pito mas prontos - beijinhámos nos times! Ok, e papai – marido dela – estava me a perguntar onde eu trabalhava e não sei quê, ela, ysh! Ela eu nem sei se estava com mais ciúme do pito se do papai!
- Sim, e ela ali a dar papo a pessoas com o homem ao lado! Coitado… depois ele é um tuguinha mesmo simpático, já cota ele. Coitado. Não fica bem, sabes? Sim, se ele não estivesse eu nem dizia nada, é normal, marido não está, estás à vontade! Mas a tua família ao lado e tu a dares papos?!
No café:
- Eu sou casado. Sim, quando as moças me perguntam eu respondo – sou casado! Porque se tu gostas de mim por exemplo, tu não vais deixar de gostar de mim por eu ser casado, né? Então, eu respondo a verdade porque é melhor, depois assim as pessoas sabem como fazer, já sabem se podem ligar à noite, se não podem, essas coisas é importante.
Moçambicano namora, noiva, faz anelamento, nikai, lobolo, casamento… junta-se, amiga-se, amantiza-se… mas não faz tudo isto, ou pelo menos algo disto, porque escolhe? Não entendo como corre tão mal o caminho quando quem o escolheu foi o caminhante que o percorre!
Porque sejamos realistas, corre mal!
Entre discussões, zangas, espancamentos, traições, separações e enganos pouco tempo há para viver em pleno o amor.
Noivado, casamento, casa 1, 2, casa 3. Separações, uniões de facto, relações à distância ou namoros… parece muitas vezes que isto das relações nada tem a ver com o desejo, com o prazer, com o respeito, com o sentimento, com o compromisso, com a intimidade…
As fórmulas são muitas, entre duas pessoas que estão de acordo tudo é possível mas por favor - sejam felizes. O resto é que não faz sentido!
As relações homem-mulher continuam a ter uma espécie de efeito hipnótico em mim, não as entendo.
Imaginem duas pessoas que se encontram, que se sentem atraídas, que se aproximam, que se conhecem, que se juntam, que nesse juntar partilham a esteira, os sonhos, os desejos, os amigos, o tempo, os interesses, as alegrias e os receios, as amizades, a casa… um dia ele sai. Sai, vai. E a partir daí são apenas tempo perdido as tentativas que se fazem na aproximação.
Imaginem duas pessoas que se conhecem, que se amam, que fazem filhos, que viajam, que planeiam, que ligam no seu amor as famílias e os sangues… um dia discutem, enciúmam-se, desentendem-se, batem-se… ela sai. Vai. Parte. Jura vinganças e faz chantagens. Sofrem ambos. Para quê?
Imaginem duas pessoas. E agora? Que pode acontecer?
Sou convidada para uma cerimónia tradicional, o Chiguiane, momento em que a família da noiva entrega, simbolicamente, a filha ao homem.
As mulheres estão vestidas com a mesma capulana e cantam uma música, diz a letra que ele não se queixe mais tarde porque esta xiluva, foi ele quem a escolheu!

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Policial moçambicano


Viajo de Marracuene a Maputo, estou atrasada e numa ultrapassagem mais apressada piso o traço contínuo, a polícia manda-me parar. Documentos, ameaça de multa, conversa, conversa…
- Então me acompanhe – saio do carro e sigo a autoridade até uma cabana de caniço -
- Então? Onde está patrão?
- Patrão?
- Sim, marido, ficou na terra?
- Não tenho marido.
- Então vemos assim, dá-me lá teu contacto e te convido para sair um dia.
- … Chefe, quanto era a multa mesmo?
Atravesso a cidade pela avenida 24 de Julho, sou parada pela lanterninha de polícia:
- Boa noite.
- Documentos?
- Hum… parece q está tudo bem. Se senhora puder só me ajudar com qualquer coisa senhora depois pode seguir.
E dois dias depois:
- Ah, boa noite, é senhora, eu nem vou ver, tudo deve estar legal.
- Sim, está tudo.
- Aqui então tudo bem. Só frio só, não pode me ajudar para uma sopa, eu nem jantei, eu…
- Tenho só assim, chefe.
- Obrigada e… senhora, és bonita, dá-me lá teu contacto.
- Ah pai! Refresco e contacto também não, né?
E depois das duas da manhã:
- Senhora boa noite. Vai sozinha?
- Sim.
- Posso entrar aí?
E de tarde, acompanhada:
- Vem a abraçar mão? Assim na via pública? Não sabe fazer isso lá na sua casa? Assim ainda vai provocar acidente a alguém!
- Mas chefe, abraçar mão tem hora?
- Hum… documentos! Bom, cunhada Fartaria, então dá lá beijo a mano que lhe acompanha!
- Chefe tá a dar ordem?
- Dá lá! Hehehe. Ok, tá aqui documentos, podem ir.
- Chefe, sabe que este foi nosso primeiro beijo?
Com rasta a dirigir carro:
- Boa noite, peço documentos.
- Aqui está.
- Está tudo bem, obrigada. Rasta man, sabe que esse é meu sonho? Eu desde criança que sonho deixar fazer rasta, mas aqui neste serviço imagina, né? Não me permitem nada. mesmo meus colegas quando vêm rasta a dirigir carro ou na rua logo querem lhe perseguir a procurar drogas e lhe criar problemas, se soubessem toda a beleza que é ser rasta, se soubessem como eu sonho! Meu filho há-de ser rasta! Vão em paz irmãos. Boa noite.
Amigos estrangeiros dirigem carro alugado:
- A esta hora o senhor se não mentir diz já que bebeu!
- Sim, bebi duas cervejas.
- Ainda por cima admite. Tem multa já!
- Não, mas isso não funciona assim, tem de fazer teste.
- Mas senhor admitiu, paga multa!
Visitantes a Maputo, que vêm trabalhar, que vêm passear, que talvez ainda olhem África com os olhos da Europa, exaltam-se com a corrupção, a extorsão, o incomodar dos turistas, o assédio… Longe de mim defender aqui a atitude desresponsabilizada, muitas vezes abusadora das autoridades, mas também é bom ver que polícia também é pessoa, que tem de muitos tipos e também que como se diz no teatro:
“Policia não tem salário, tem mesada!”

sexta-feira, 25 de junho de 2010

A carne é forte


“Mas desculpa lá, qual é o sítio aqui onde não é talho?”
Bradas, siss’s, q andamos nós a fazer? Onde andam as emoções, se não as treinamos bazam, sabiam? Se perdes tempo com esse que te engana e que pagas na mesma moeda enganado de volta, não avances mais.
Sim, falo de novo das relações homem-mulher.
Mana, segue Teu caminho. Sim, talvez não existam pessoas erradas, mas existem encontros que simplesmente não dão certo. Sê mulher, mas orgulhosa na tua feminilidade, no teu poder, nas tuas qualidades – sê guerreira, bela, única – não imites, não caces, não compres, não vendas. Não porque não se pode fazer, porque seja errado, condenável, porque a religião não permita ou a sociedade critique, mas apenas porque se tornou central para ti, é motor da tua vida, e isso sim, é perigoso.
Maputo é uma cidade apaixonante.
Quente e húmida.
Mas muitas vezes estas características não passam da área das relações da carne, das trocas comerciais, dos investimentos que pagam o liceu, a universidade, a casa, o carro, as viagens, os vestidos, os perfumes, a educação dos filhos de sangue.
Amigos visitam Moçambique e apreciam as damas. Amigas visitam maputo e deliciam-se nos papos. Na troca de olhares, no roçar das passadas, no partilhar da mesa, no pagar da conta, no oferecer da boleia, no colar da bunda, da boca, do corpo exterior com salvaguarda do interior.
Entendes do que falo? Falo dos muitos lugares de Maputo que estão transformados em talhos. Nos restaurantes, esplanadas, bares, lobby de hotéis, discotecas.
Não falo da carne que se vende por dinheiro nas ruas dos profissionais do sexo, mas da que se troca por interesse nas zonas mais chiques da cidade.
Não faço aqui juízos morais, ou sequer de valor, aceito e respeito tudo, todos os caminhos e opções são válidos, cada um sabe de si e os caminhos da felicidade e da satisfação humana são por vezes… misteriosos.
Mas falo de quando se perdem as almas, a identidade, a juventude, o prazer, o amor… nas trocas de influências, nas massagens de ego, na superficialidade do desejo vivido como montra de poder.
Em muitos lugares na cidade de vê a cena (refiro-me apenas ao cliché óbvio mas pode tomar várias formas): um homem branco, normalmente mais velho, acompanhado de três mulheres jovens, bonitas, produzidas; mulheres em grupos aguardando as oportunidades de conhecer o próximo investimento; homens jovens e bonitos em fatos da moda e olhares de ave de rapina…
Repito que não estou aqui para criticar, mas observo. Observo os tempos, os ataques, as estratégias, os passes arrojados… e por vezes fixo-me nos códigos. Porque a comunicação é tema que me fascina, porque seduzir, engatar, fazer game, é comunicar – é medir, é aproximar, é conquistar. Mas em muitos lugares desta cidade é cansativo. Ninguém passa despercebido e todos entram na regra de que só podes estar aqui a fazer uma de duas coisas, ou a comprar ou a vender. E mesmo os que no seu país natal são tímidos e reservados aqui vivem todos as fantasias do D. Juan. Mesmo os mais insonsos britânicos, os mais snobs franceses, os mais frios suecos, os mais treinados marialvas portugueses ou os mais racistas sul-africanos - todos atacam, e em todas as direcções.
Maputo é cidade diversa, cheia de contrastes, exotismos e cosmopolitismo, visitada por turistas, em estadias curtas e prolongadas, em negócios e lazer, muitas nacionalidades, muitas etnias, muitas culturas – paisagem humana fascinante, seja masculina ou feminina, diversidade arco-íris e… oportunidade. A música embala, e o calor que se faz sentir (ou costumava!) derrete as inibições. As pessoas soltam-se e voam em “moves” arriscados. Mas a noite quase perde o erotismo e torna-se lugar de caça. E um amigo acabado de chegar, ainda resistente pergunta: “mas aqui há algum lugar que não seja um talho?” Eu vou respondendo que sim, que há, mas tenho dificuldades em provar o meu ponto.
Mulheres perdem as horas da escola no salão, nas unhas de gel, a investir no futuro – acreditam. Homens usam os talentos e os defeitos em apostas de passaporte… e todos nos distraímos assim.
Sim, recebem as oportunidades do estrangeiro, as viagens, o estatuto, os filhos de uns e o sustento dos outros…
Sim, a vida é feita de caminhos, mas este não avança, tropeça.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Do futebol


Quando as pessoas estão a ver futebol eu acho que elas torcem pelo equipamento.
Sim! Porque vejamos, determinado jogador, que aplaudem quando joga para num clube, apupam e insultam quando joga para outro. Os treinadores como outro exemplo, mudam de acordo com os contratos, o orçamento, e outras coisas pouco ou nada relacionadas com a prática de um desporto.
Ora se alguém torce sempre pelo Benfica ou pelo Ferroviário de Maputo, no fundo torce por um equipamento, porque essa é a única constante!
Ok, eu confesso – não sou adepta de nenhum clube de futebol. Não vibro com a proximidade de um jogo, não vou procurar o lugar com o maior ecrã, não faço programa com os amigos nem contra-programa com as amigas. Nem penso nisso. Há um jogo, ok, nice, e então? Porquê tanto entusiasmo??
Não tenho nada contra o desporto, ou este jogo em particular, contra as tácticas, as regras ou a bola (ou esférico como gostam de dizer os comentadores). Nem sou contra as declarações dos jogadores sobre os prognósticos no fim do jogo, os bodes respiratórios, a decisão acertada de perante o abismo dar o passo em frente… É verdade que acho escandalosos os ordenados milionários que o desporto envolve, num mundo onde temos tantos problemas básicos para resolver, mas enfim, não é nada disso que me incomoda.
Apenas… não me toca.
Não impeço ninguém de ver o jogo nem tentaria convencer - comprando um maior plasma, instalando tv cabo e recheando a geleira de Laurentina – o namorado a ver em casa. E até posso sair para ver um jogo – no estádio, de preferência – nada contra. Mesmo.
Só estranho o fenómeno apenas porque a mim, na verdade, parece-me que as pessoas não gostam do jogo. Mas entusiasmam-se por tudo o resto! As intrigas entre os clubes. Os valores dos contractos milionários, as vidas privadas e médicas dos jogadores, as claques, as vuvozelas.
O futebol para mim faz parte dos mistérios religiosos – sim, porque é misteriosa a maneira como as pessoas se vestem todas de uma cor, seja ela qual for; usam um cachecol, esteja o clima que estiver; gritam, seja qual for o espaço onde estão, mesmo que seja a sala de estar; sofrem ou rejubilam, qualquer que seja a sua vida emocional… as pessoas praguejam com televisores, insultam relatos de rádio, amaldiçoam feedback nos celulares. As pessoas vivem o futebol. Com plenitude, fervor, fé.
Pelo futebol as pessoas deslocam-se, despendem de dinheiro, aguardam horas em filas, suspendem trabalho e abandonam salas de parto.
Começou o mundial. Todos sabemos.
E graças a isso podemos ver grupos de homens barulhentos misteriosamente vestidos de bandeiras a encherem as cidades, os autocarros, os bares.
Graças a isso muitas pessoas sofrem de ataques repentinos de nacionalismo e a bandeira passa a ser um acessório imprescindível. Porquê? Quem é que em qualquer outra situação acharia normal que se vendessem bandeiras na rua?
Eu gosto de desporto, e adoro a sua característica performativa - depende de um momento e do talento de várias artes em constante improviso, entregues ao acaso.
Gosto de ver um bom jogo, e entusiasmo-me com os golos, ora até aqui é pacífica a minha companhia a assistir, o problema parece ser que eu me entusiasme com todos os golos… Porque quando me perguntam por quem estou a torcer eu digo que estou pelo que ganhar. Ou seja, eu tanto estou pelo México, como pela África do Sul; pela Alemanha como pela Austrália… estou literalmente por quem jogar melhor.
Um bom golo é um bom golo, ou não é?

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Da solidão


Quando saí de Portugal saí da família. Do grupo dos amigos, da partilha dos colegas do trabalho, da familiaridade dos conhecidos. Saí. E saí sozinha. Trouxe comigo a instabilidade de uma paixão e a dedicação incondicional de um cão. Só.
Talvez só quem está no estrangeiro, sozinho, sabe do que falo. Só esse sabe da misteriosa doçura que tomam as questões familiares, que na terra natal eram amargas. Talvez só esse saiba o que sinto quando estou de visita e se aproximam os amigos que não via desde os 15 anos e com os quais lá na terra nunca falava. Só esse sabe a vontade repentina de ir aos encontros foleiros da turma que quase esquecemos. Só esse pode saber como a saudade nos ataca quando menos esperamos, e toma forma nas coisas mais surpreendentes.
A mim atacou-me em viagem: num salão do Botswana o cabeleireiro sul-africano ouve Dulce Pontes e eu, enquanto me lavam o cabelo, começo a chorar, assim mesmo, sem pensar, sem gostar mesmo da música que toca, apenas sentindo numa zona indefinida do eu a intraduzível saudade.
Mas a verdade é que nem lá nem cá, em nenhuma parte existe isso a que se chama companhia, aquela que mata a solidão. Todos estamos sozinhos, nascemos assim, assim morremos e pelo caminho… pelo caminho vamo-nos enganando.
Podemos enganar-nos, claro. Dizer a nós mesmos que estamos em companhia. Com os pais, os irmãos, os maridos, as namoradas, os bradas.
Em África as famílias são grandes, são alargadas, o primo é irmão e a amiga da mãe é sempre tia. São maiores e mais presentes, mais activas nas vidas de cada um de nós, mais envolvidas, mais solidárias…
Quando cheguei a África cheguei sozinha, com um apoio frágil, quase quebrado, e vinha cada vez mais consciente da solidão que nos acompanha – ela sim nossa única companhia – a cada um de nós.
Mas não minto, quando a minha empregada se mostrou preocupada pela primeira vez comigo, quando me ferveu ervas para o chá, quando me fez matapa por saber que era meu favorito, quando me perguntou pela saúde, quando mentiu para me proteger, quando me veio trazer à saída o casaco por achar que estava frio, quando me disse que ela era agora a minha mãe - a minha mãe africana, eu senti-me melhor.
Quando as minhas bradas, apenas conhecidas de ocasião, me ligaram preocupadas, quando me receberam em casa, quando me levaram aos almoços e festas, quando me apresentaram à família, quando me ofereceram quarto e mimo, eu senti-me melhor.
Quando o homem com quem posso partilhar as coisas do prazer, do lazer, do amor, se lembra e se dedica aos pormenores íntimos de uma preocupação, de uma vontade de protecção, de uma presença quente e intensa, eu sinto-me bem.
A mente é apanhada quase de surpresa com o presente e o corpo, fraco, logo amolece, descontrai em sorrisos e apetece abraçar o mundo.
E eu sentia que começava a ter companhia. Começava a enganar-me nas formas da proximidade. Devagarinho começava a encontrar uma família em África. Uma mãe, muitos bradas, irmãos e irmãs. Já havia merendas, que recebia; e capulanas guardadas para mim, numa casa. Havia convites para almoços de domingo e um lugar guardado nas festas fora da cidade. Havia.
Um dia destes ligou-me uma mãe. Ouvi as preocupações dedicados e maternais e senti a saudade da mãmã que tenho longe e senti desejos de fertilidade que nem sei se me assiste. Porque parece tão constante, tão incondicional a ligação de mãe.
Estou em casa e como uma massa feita que fiz, por razões misteriosas para mim não é o tempero, os ingredientes, o tempo de cozedura ou o capricho da receita que fazem diferença no que saboreio. Não, para mim o apetite é… companhia. E as papilas gustativas parece que se negam a participar em refeições a só, e tudo me sabe… ao mesmo.
Estou sentada a ver um espectáculo e resisto a encostar o meu ombro na pessoa que está a meu lado, resisto a pedir atenção, carinho, conforto.
Porquê? Porque ele não existe. Só o imaginamos. E estamos sozinhos, todos nós. Mas podemos estar sozinhos nós os dois, juntos. Hoje não é assim: estou sozinha, sozinha.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Da vergonha


A vergonha é para mim um sentimento… misterioso.
Não falo da vergonha encabulada da infância, quando somos apanhados em falta. Ou do nervoso que faz o sangue subir com mais intensidade à face e nos aquece as bochechas.
Falo da vergonha como um sentimento forte, ácido, contundente por vezes, que nos faz ter dificuldade em levantar a cabeça, em olhar os outros nos olhos; que nos impede de falar livremente das nossas próprias acções, sem medo de censura ou desaprovação.
Porque acho estranho, mesmo bizarro, que eu possa sentir vergonha de algo que fiz. Se fiz é normal, mesmo que agora fizesse diferente, mesmo que tenha outra opinião e gostasse de mudar algo, na altura foi assim, nada a fazer. E na verdade o que posso mudar agora, a minha acção é essa, não é ter vergonha do passado mas fazer diferente.
A vergonha, com excepção dada à naïfte charmosa da tenra idade, é sentimento inútil. Não serve para nada. É sentimento cobarde, que nos impede de agir no agora.
Mas claro que eu já senti vergonha, sim todos nós sentimos.
Mas a vergonha faz-nos esconder, impede-nos de enfrentar, leva-nos a mentir.
Vejamos um exemplo concreto, nas situações de violência doméstica as vítimas começam por desculpar os agressores. São comuns as contextualizações elaboradas e emotivas das acções frias e secas que sofrem. E justificamos, elaboramos, enganamo-nos, protegemos quem não merece protecção.
Namorávamos há bastante tempo e eu era muito nova não pude fazer nada e… Ele era carinhoso mas um dia ficou muito nervoso com uma situação no emprego e… Casámos muito cedo e… Ele nunca tinha tido nenhuma atitude de violência mas… Ele era muito calmo mas quando bebia ficava completamente diferente e… Ele pensava que eu tinha outra pessoa e descontrolou-se… Ele era muito inseguro e tinha necessidade de mostrar o seu poder em frente às outras pessoas e… Ele bebia e… Ele acompanhava-me até à escola e ficava à minha espera no portão, e não podia ver-me a falar com colegas senão...
E… ele deu-me uma chapada; perseguiu-me; bateu-me com o cinto; afastou-me da família; apertou-me o pescoço; ameaçou-me com uma faca; atirou-me ao chão; rapou-me o cabelo; torceu-me o braço; atirou-me pelas escadas; fez chantagem comigo; insultou-me; roubou-me o meu filho; arrombou uma porta na minha cara; deu-me pontapés; bateu-me quando estava grávida; violou-me; proibiu-me de trabalhar; ridicularizou-me frente a estranhos; fechou-me em casa; proibiu-me de falar com os amigos; bateu com a minha cabeça na parede; retirou-me o dinheiro; queimou-me com um cigarro; pisou-me; bateu-me enquanto eu segurava o meu filho; caluniou-me junto a meus vizinhos; destruiu as minhas coisas; humilhou-me…
Raramente as acusações são feitas assim, crua e secamente. Na maioria das vezes as atenuantes, somos nós, as vítimas, que as apresentamos mas invariavelmente a frase acaba com “bateu-me”. Sim, ele bateu-me. Mas sou eu, a vítima, que construo a frase com “mas” e “se” e justificações para o acto dele.
Porquê?
Porque tenho vergonha. EU tenho vergonha de ter sido agredida.
Faz sentido isso?
Mas sim, claro. Eu tenho vergonha porque eu o escolhi, porque eu não tenho coragem de denunciar, de ir embora, de fazer queixa à polícia, de acabar com o abuso. E é aqui que começa o poder do agressor, o poder que eu, vítima, lhe dou, de manipular o que eu sinto por dentro, o que eu sinto em relação a mim. Muitas pessoas são abusadas e não denunciam porque elas têm vergonha. Sim, também têm pena muitas vezes do amor que não resultou, medo de não ter mais hipóteses na vida sozinha, têm falta de opções de sobrevivência, e nenhuma independência económica, falta de compreensão por parte dos familiares… mas muitas vezes somos nós, as vítimas, que nos colocamos nessas situações, somos nós que nos escondemos, que não contamos, que nos afastamos das pessoas que nos são próximas, que desculpamos e justificamos as acções injustificáveis. Porque temos vergonha.
E muitas vezes ele também tem, ele, depois de exposto e denunciado tem vergonha. Mas tem vergonha de que se saiba? Devia ter vergonha sim, mas vergonha de fazer.
Por isso eu agora conto. Digo tudo, a toda a gente, exponho o que dizem ser a nossa intimidade e que se deve preservar, não importa! Nada é íntimo, deve-se partilhar. E embora em muitas facetas da intimidade esta afirmação possa ser questionável nesta não é: se és abusada conta, diz, expõe. Não guardes. Não tenhas vergonha.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Antes do juízo II


Pensas que sabes muito sobre África? Sobre a Europa, sobre as Américas ou sobre a Ásia de Bollywood, onde vivem os primos afastados e as sobrinhas bonitas? Pensas que sabes muito sobre a tua terra, a tua cultura, as tuas raízes ou o que são os interesses da tua raça, do teu grupo social, da tua família, dos teus amigos? Não estejas certo. A vida é mutante. Tu e eu também.
Um destes fins-de-semana fui convidada a uma celebração. Um aniversário de uma criança. Eu fui.
Fui segura, armada com o meu pré-juízo. Não esperava grande desafio, nem grande teste aos meus talentos de comunicação: vivo em África há algum tempo - em Moçambique há mais de dois anos; a festa era no Fomento - vivi na Liberdade; a família é a da minha empregada - que conheço há um ano, de quem conheço irmãos, mãe, filhos, morada, credo e condição económica…
Surpresa…
Contava eu que ia a uma festa. Cheguei tarde, e logo aqui fui desafiando as questões do respeito. Tudo é relativo mas é comum a muitas culturas, localizações geográficas, contextos sociais e religiosos - é quase seguro que chegar a horas não ofende ninguém. Mas mesmo assim eu resolvi desafiar os meus talentos e… chegar atrasada.
Chego, e a cerimónia que devia começar há cinco horas atrás e estar agora no momento descontraído dos comes e bebes, está ainda no início, na celebração religiosa.
Eu encolho-me e repito os “Amén”, meio envergonhada, meio afirmativa, em ataque de fé inesperada, em afirmação involuntária dos antecedentes da formação religiosa. Eu não presto culto ao deus cristão mas aqui sai-me da boca… porquê?
Eu não sabia o que fazer, eu não entendia metade do que se dizia, do que se fazia, do que se esperava de mim, interpretava cada frase como lição para minha própria falha e cada olhar cansado como censura, descodificava os gestos como desconfiança, e até o meu lugar à mesa parecia desafiar as capulanas nas esteiras onde até os mais velhos estavam sentados.
Eu sentada, e a mente a viajar em falhas imaginárias e medos reais. Não sabia o que fazer. Durante duas horas não soube, falhei o cumprimento à mãe e pai da casa, a homenagem à criança e a atenção à anfitriã. Bebi Fanta que nunca bebo e nem toquei na cacana que foi feita para mim, não elogiei as músicas cantadas, não aprendi com o que me intrigou nem mostrei que sei, que sinto, que gosto, que posso dar. Não dei nem recebi. Não me diverti. E logo que pude fugi.
Quando não me aproximo sou eu que fujo, decido ficar no meu ovo de conforto, defendo-me.
O que podia fazer? Não sei, podia ser: “quero cumprimentar mãe da casa, onde está?”; “Desculpe ter chegado tarde mas e agora… como se faz aqui em casa?”
Podia dizer! Pensemos juntos, quem iria eu ofender? Ninguém. Então porquê? Entrei como mulungo, estrangeira, mas podia ter saído de outro modo, não foi o que escolhi… mas a pergunta então é, porque fui?
Que fui fazer ao ocupar a cadeira de destaque na cerimónia da família? Quando me sento entre uma família africana não sou eu que me sento, é um mulungo que toma lugar, que toma palavra, que respeita ou desrespeita os cultos. Como um africano numa comunidade chinesa é “o” africano e não um individuo qualquer, único, com sua personalidade, suas manias, gostos e defeitos, não, ele é África, porque é tudo o que conhecem sobre ela.
A vida é cheia de negociações e re-negociações, de comunicação, de hierarquia, de ritos, de hábitos, de códigos, de regras, e a não ser que escolhamos a vida na montanha temos de descodificar. E a toda a hora. Sempre.
Viver é descodificar, mais nada.
Mas é bom quando a tradução é simultânea! Claro que depende dos intervenientes, de um tempo, de um espaço, de uma situação específica. E aqui o delay foi inevitável…
Mas agora, em casa, sentada nas almofadas da sala em estilo oriental, aqui descobri.
Porque agi assim?
Por medo. Por medo do ridículo. Eu escondi-me, nada fiz por cobardia, por vergonha, por defesa. Preferi correr o risco de ser mal-educada que ser ridícula.
Pela experiência que vivi até hoje tenho poucas certezas e as que tenho testo-as todos os dias. Esta continua actual: todos somos ignorantes.