sexta-feira, 16 de julho de 2010

Cuidado com a paixão


Dizem-me que estou apaixonada.
E que isso não é bom.
Dizem-me que em todo o mundo corrupção é corrupção, que aqui como em qualquer parte traição é traição e mentira, mentira é!
Como todos os que estão apaixonados a África eu perdoo tudo. E o que condenaria no país onde nasci aqui acho graça, sorrio, relativizo. Sou apanhada nas armadilhas do pitoresco, do exótico, da novidade.
Ok, e se pensar em escrever sobre África sem falar no céu azul e na água transparente? Sem falar no sorriso aberto das pessoas. Sem elogiar a calidez da temperatura e a doçura das frutas.
África tem outro lado. Eu experimento-o com os olhos no prazer das doçuras mas na verdade também marcam os vergões dos caminhos duros do terreno.
Agora é só escolher o tema. Dos feiticeiros aos envenenamentos, das doenças às drogas, das violências, aos roubos, raptos, agressões. Do trabalho infantil e dos abusos das crianças. Abusos cometidos pelos pais, pelos tios, pelos amigos. Das excisões e das castrações. Da hierarquização das relações onde só importa o doutor e se pisa o pescador.
Sim, África é dura, que fazer?
As crianças carregam água na cabeça desde os cinco anos de idade. Em muitas escolas não há carteiras nas salas de aulas e as notas nos exames podem ser compradas ao professor, por dinheiro ou favores sexuais. Nos lugares mais isolados os meninos com deficiências ainda são mortos e os albinos são alvo de descriminações, chacota, feitiçaria.
Empresas poderosas em Moçambique obtêm licenças especiais do Ministério para trabalhar libertando gazes nocivos para a atmosfera. O lixo acumula-se nas ruas da cidade e podemos ver pessoas a comer directamente dos contentores. Nos hospitais morre-se por interesse de agências funerárias. Crianças são raptadas ou vendidas pelas famílias para prostituição na África do sul. Trabalhadores são explorados com maus salários e desumanas condições de trabalho. Famílias doentes de HIV sida são impedidas de tomar medicação por questões de descriminação, de condição económica, de prepotência familiar. A corrupção verifica-se em todas as áreas do poder, desde a mais simples operação STOP. Não existem condições de transporte, os poucos chapas trabalham sem condições, sem segurança, sem horário. Nas famílias a tradicional poligamia é escondida em nome da correcta atitude cristã. A crença nas medicinas tradicionais é criticada nas suas virtudes e muitas vezes seguida nas suas maiores mentiras. Na maior parte dos prédios os elevadores não funcionam. Os ratos correm pelos corredores, a maioria das pessoas não tem água canalizada. Em muitos dos prédios de maputo cozinha-se na varanda, em fogão de carvão, as meninas da casa descem ao rés-do-chão para pilar o milho no parque de estacionamento das traseiras onde durante a noite pessoas urinam e defecam. Crianças pedem nas ruas, nos semáforos, dormem ao relento, sem escola ou família. Mulheres são vítima fatais de violência doméstica. Empresários dos mais ricos vendem electrodomésticos recheados de droga, vivem em vivendas com mais de nove quartos com parque de estacionamento para mais de vinte carros…
A lista podia continuar.
Todos temos relações com o outro, com o ambiente, com os objectos, com os sons, o céu e a luz do sol. Todos caminhamos envolvidos nos elos das proximidades e nas cerimónias dos afastamentos. A vida e isto, entre os movimentos de aproximação e afastamento.
Eu vivo aqui, e o meu olhar será sempre o de estrangeira. Falo apenas do que me toca, do que me aquece os dias.
Todos sabemos da nossa área de presença, de ser, de estar. Todos sabemos.
Moçambique revela-se, e para mim neste momento é casa e como em todas as casas, começo a pagar o castigo da familiaridade.

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