sexta-feira, 26 de março de 2010

Teatro paixão


«O artista age como um ser mediúnico que, para além do tempo e do espaço, procura o seu caminho através de uma clareira.»
Guardo esta frase desde a minha formação em teatro. Porque é que a guardo, não sei… talvez porque na verdade nunca a entendi…
Celebra-se o dia mundial do teatro.
E eu estou descansada. Sim, porque esta é a prova de que estamos preocupados, e mundialmente! O teatro tem um dia. Tal como tem a mulher, a criança, o animal, a igualdade social, etc, etc.
E se se preocupam, é porque estamos de facto em perigo!
Mas a verdade é que, pelo menos olhando para Moçambique, não é perigo de extinção.
O teatro é muito, é forte, é amado.
Por vezes quando trabalhava em Portugal nós perguntávamo-nos, nós, os fazedores de teatro, e refiro-me a encenadores, actores, dramaturgos ou críticos:
- Se fizéssemos greve, acham que alguém se aperceberia? Tendo em conta a quantidade de espectadores que o teatro tem… duvido.
Sim, eu também duvido, mas aqui, aqui eu acho que a integridade física dos criadores ficaria seriamente comprometida… se por uma semana que fosse se fechassem as portas de todos os teatros haveria motins! Motins como o que eu vi no dia de uma estreia atrasada um bom par de horas, em que o público agitou e quase partiu a porta de indignação. Eu fiquei impressionada, leia-se “muito bem impressionada”, com o público moçambicano, é assim mesmo, pelas coisas importantes é que vale a pena perder a cabeça!!
Aqui vive-se o teatro. Com intensidade, com força, quase com fé.
Eu faço teatro, há muito tempo que o faço. Mas sempre que páro por um, dois, três meses, sempre que isso acontece é com muitas reticências que eu digo … sou… actriz… é uma espécie de medo de não merecimento… para mim o ser actriz não é profissão, formação, não há contrato ou projecto que o defina, para mim é um estado… e um estado mediúnico. Sim, de comunicação com algo maior. Não digo que seja religioso, mas é certamente mágico…
Por isso não são os anos de brincadeiras de infância e juventude nos palcos, nem os de formação superior nas escolas, nem os de experiência profissional nos teatros e na tela, não, isso para mim de nada vale porque nada existe nem tem importância, nem é para mim teatro se não acontecer no estado, aquele, o de veículo das vontades dos deuses.
Saí de Portugal há uns anos e com a pátria deixei também esses caminhos, pensava. Estava a um mês de estrear um espectáculo, o texto já sabia de cor, os movimentos na cena já os desenhava e tudo o que rodeia o trabalho do actor estava já a tomar forma. Trabalhei tudo com o fervor de quem fica e depois fui. É mesmo assim, teatro é a arte da acção, do agora, e só aí acontece, não existe amanhã, seu mundo é hoje.
E saí bem, viajei, olhei novos povos, estabeleci novas pontes com os mundos. Viajava bem e feliz, coração apartado da paixão mas coração sossegado e seguro. Até chegar lá, ao teatro mais antigo do mundo, Epidauro… aí voltou o calor excitado da paixão, o ciúme nervoso de uma dúvida: “e se não sou feliz sem ele?”
Mas escondi a dúvida nas rugas marcadas de uma careta de riso. Mais mundos vivi, e muitas voltas dei, e poucas vezes repensei o amante abandonado. Segui em frente, é o único caminho que conheço.
São tortuosos os caminhos e misteriosos os destinos – vim dar aqui. Moçambique.
Aqui de novo encontrei o amor e os seus sinais.
Cheguei no início do ano, e preparava-se um espectáculo, assistia aos ensaios – para as almas apaixonadas preenche o vazio assistir à prática alheia – sentada na plateia partilhava os jogos no palco, e no dia da estreia subi. Surpreendida, insegura neste perdão aberto que a paixão abandonada me concedia.
E aí me reencontrei. Num teatro sem mecanização ou repetição fria, criado em colectivo, vivido em interacção com o público, olhando e falando sobre as questões verdadeiras das pessoas vivas, com corações ainda quentes no peito.
Muitas vezes quando falamos da produção artística falamos da função, a arte não tem função, não serve para nada.
Para mim serve para isto…

sexta-feira, 12 de março de 2010

Homem que é homem


É sexta-feira, e homem que é homem na sexta-feira sai. Sozinho.
Quero dizer, sem a sua dama.
Porque moçambicano que é homem sai com os bradas, vai apreciar, ver um rabos, agarrar umas boas, apanhar game, recolher contactos, vai sair!
Eles damam à pouco tempo mas ela já sentiu. Por vezes saem juntos mas invariavelmente em determinado momento ele desaparece:
- Venho já.
E dama fica. É suposto ficar. E como estiver! Sozinha, com conhecidos, família, anónimos, bradas ou manos, ela fica. Ele já vem. O “já” pode ter duração variável. Depende do lugar, das companhias, da ocasião, depende, mas acontece sempre, ele foi.
Quando a saída é do tipo programa de final de semana, com os bradas e suas damas, ela e as damas ficam. Ficam por ali, juntas. Claro que por vezes não se conhecem. Olham-se. Conversam, mas a conversa não é interessada, animada, sequer justificada, a conversa é aquela mesma que se faz quando o damo baza. Quando ele baza para bater papo de homens, para chekar cenas, para gamear, para smokar, para beber. Por alguma razão, óbvia para muitos mas desconhecida para mim, há momentos impartilháveis.
Final de semana seguinte damo quer viajar à África do sul. Chega a casa e informa do seu plano, ela entusiasma-se com as perspectivas de passeio, começa a pensar nas compras do mês, nas montras, talvez numa ida romântica ao cinema. Mas homem que é homem avisa logo que vai viajar com os bradas! Ok, ela reformula os planos, talvez então para cinema não dê, mas começa já a pensar que bolsa vai levar quando o damo esclarece que ELE vai à África do sul com os bradas, ELE.
E ela?
Ela? Não sei, fica, né?
Discutem, dama não quer aceitar, e é aqui que o damo usa o argumento inquestionável, irreparável, para ela inaceitável:
- Mas vês mais alguma mulher a ir? Assim não podemos falar à vontade!
Porque constroem os homens relações com mulheres com as quais não estão à vontade é que eu não entendo, dama também não. Dama é como eu, estamos juntas, mas dama é jovem , ainda faita. Não aceita, discute, faz confusão, grita, esperneia. Ele? Ele fecha-lhe em casa à chave e, acreditando nas propriedades terapêuticas de uma porta fechada, vai embora! Mais tarde volta ela já ligou à mãe dele, à irmã e até à tia, já recorreu às vizinhas e ligou mesmo para o estrangeiro:
- Porque eu sei q ele foi para lá com os amigos só para andarem atrás das gajas.
Sim, ela tem razão, mas homem que é homem é assim que faz.
Dama não sabe, mas homem entende.
Dama precisa mais tempo mas não é tempo para se inserir, é tempo para se submeter, para observar bem à sua volta e ver que ninguém discute, que quando estão os bradas Moçambicano fica com bradas, e dama vai fazer suas coisas: cozinhar (mesmo que não saiba como); tratar das crianças (mesmo que não seja mãe); bater papo com as mulheres (mesmo que não as conheça), eu sei lá! Na hora da refeição a mulher serve o homem, um prato de comida – no qual ele em geral nem toca – um copo com bebida, que necessita de ser cheio várias vezes.
Dama tem de entender, é assim. Pelo menos quando os amigos estão por perto.

terça-feira, 9 de março de 2010

Em tuguês

Passou o Natal e tuga não bazou para a Ponta do Ouro, para o Bilene ou para Inhambane, nada! Tuga que é tuga foi para a tuga! Foi passar o Natal à terra, a consoada com a famelga.
Dentro do avião as hospedeiras não smilam, estão de trombas. E logo que chega ao aeroporto tuga, tuga não sente frio, tem um briol do caraças!
Tuga chega e gaba-se das gajas de Maputo e queixa-se dos c... dos pretos. Enfim, arma-se em carapau de corrida. Sim, porque tuga acha que em mocambique é boss, e não tem dama, tem gajas!
Tuga acorda de manha e lá fora não chove, borrasca, no chão não há poças de água, há lameiros e ele não tropeça, entropeça! E embora tenha fome não mata o bicho, toma um pequeno-almoço.
Sai de casa e não dirige, conduz, e não vira o volante, destroce.
Esta’ atrasado mas tuga não spida, vai a abrir.
Tuga não vive 24horas, vive 12horas duas vezes. Por isso às 2 - e é preciso acrescentar “da tarde” – almoça.
Depois do almoço tuga nunca está pronto, está prontos! Toca o telemóvel e tuga não ouviu, óviu. Tuga atende o celular, mas não é a fofa, é a pucurrucha.
Na tuga há crise por isso o tuga tem carro novo, tem plasma, tem celular com fotos, vídeo e internet, tem portátil, tem calças Timberland e pullover Boss. Mas tuga sofre, porque “a vida não tá fácil para ninguém”. Por isso tuga não fica zerado ou sem taco, tuga tá sem guito, sem papel, sem dinheiro, então tuga diz que tá teso (moçambicano não usa isso de ficar teso, quando tá teso vê-se!)
Tuga nao diz r, nem rr, diz rrr: por isso tuga sai do carrro a corrrer.
É noite e tuga não tacha, morfa. E depois não organiza coisas, orienta cenas.
Vai visitar os amigos e tuga não anoitece, faz serão. Tuga não avisa que tu hás-de, tuga avisa hades! Tuga não sabe nós, sabe agente.
Tem night na disco e tuga não surge, tuga sai à noite. E na tuga não há músicas a bater, há músicas a bombar.
E tuga não leva a mais nova, tuga leva a caçula.

E na disco tuga não aprecia, tuga incomoda. E da dama, tuga não acha que tem boas, acha que é boa como o milho, o carapau, o bife, a febra.
Tuga não dança, tuga tropeça, e não fica jazz, embebeda-se. Tuga não spida acima de 120km hora porque não é politicamente correcto. E se é apanhado tuga não dá refresco a cinzentinho, mas tuga aquece a mão ao chui.
Tuga volta para casa da dama mas tuga não tá together, tá junto. Tira a roupa e não se manda para cima da cama, tuga amanda-se. E tuga lamenta-se porque não tem destino, tem fado.
Dama pergunta onde esteve e tuga não dá baile, dá ofensa.
Mas é mentira na tuga à noite não tá frio, tá grizo!!
Dia seguinte tuga não fica off, tem preguicite.
Tuga não djoba, labuta. E não gazeta, falta, porque não fica incomodado, fica inconfortável.
Dia dos namorados dama quer fazer um programa romântico e tuga não acha complicado, acha uma pimpineira. Tuga não diz “não é” diz “então vá”. Bradas desafiam para programa de homem e tuga não é matreco, é careta.
Leva flores para dama mas tuga não deu cabeçada, tuga gamou.
Escolhe a roupa branca e vermelha mas tuga não estila, arma-se.
Não bebe laurentina preta, bebe imperial.
Depois do jantar tuga não vai embora, pisga-se. E para dama não zangar tuga não baba, engraxa.
Com os bradas tuga não esta chato, atrofiou.
Dama queixa-se mas tuga não é vadio, é galdério.
E os bradas queixam-se mas tuga não é parado, é cromo.
Tuga não groova, tuga tá em crise.

Tuga não é armado em bom, é armado em carapau de corrida. E na night não showoffa, tuga arma-se aos cucos.
Tuga não é nice, tuga é bacano.
Tuga não diz “ysh”, diz “que cena!”, “brutal”.
Tuga não conta boas, conta novidades. Não diz maningue, diz altamente.
Com tuga nunca está tudo maningue nice, tuga vai-se andando.
Final das férias tuga não despede tata, despede adeus.
E na despedida tuga não amassa dama, não agarra bunda, tuga apalpa rabo.
E logo que entra no aviao tuga não conquista, engata.
Estao a servir a refeição e tuga não é confuso, complica.
Mal regressa a África tuga queixa-se do tuga, que é saloio, que tudo é bué caro...
Ah! E tuga não é tuga, é portuguÊS!

quarta-feira, 3 de março de 2010

um gone seguro


Eles olham-se, se encontram na night por acaso, trocam contactos, mandam sms e combinam tchiling. As coisas progridem bem - moçambicano não perde tempo! - mas quando menos espera ele chega.
O amigo da tuga.
Ele não conhece esse “amigo”, mas sabe que vai ficar na casa dela, e ele sabe, lá na casa só tem uma cama… Mas, moçambicano que é moçambicano não fica desprogramado, moçambicano ataca, rapta, convida, surge, oferece ajuda e, principalmente e absolutamente - fica brada do brada da dama!
Sexta-feira vão sair, dama convida, moçambicano aparece, mostra os bons places, demonstra os bons passos e mais importante que tudo, apresenta damas ao “amigo”. Night tá nice mas amigo tá off, avião, aeroporto, não sei mais quê. Dama tá a gramar da night, quer tchilar, dançar, beber. Dama insiste:
- Ficamos mais tempo - amigo vai dizendo:
- Vamos para casa - e moçambicano vai lembrando aquela casa pequenina, com uma só cama e...:
- Mais uma bebida? - ela sorri:
- Yap - Mais uma hora de olhares é teste à resistência do amigo, que cede:
- Podes ir deixar-me a casa? Tou cansado - dama disfarça entusiasmo:
- Ya, vou e volto que aqui tá nice - e moçambicano jinga:
- Eu também tou a ficar off, vou bazar - dama dropa amigo e smssa “bazaste?”, moçambicano responde “te apanho onde?"
Moçambicano guina, spida, agarra perna de dama e ela já sabe, procuram… não procuram um esconderijo, procuram um gone. Na cidade de Maputo gone é coisa perigosa, rara, por demais frequentada. Mas ele procura, nos mais populares, nos mais frescos, nos mais discretos, nos menos prováveis. E estaciona:
- Aqui está bom.
- Aqui?
- Sim, está bom, anda cá.
- Mas aqui… tem guardas ali, eu estou-lhes a ver.
- Qual é que é o problema? Ignora-lhes lá – ele e ela passam para o banco de trás e… damam, agarram, comilam, curtem. Está calor, e o calor só aumenta, e é aí, quando o calor está no seu máximo que ele surge. Surge de fininho, vestido de cinzento, o passo avança entre os sons e movimentos que pontuam o prazer, que embacia os vidros, que fazem vibrar o amortecimento do carro estacionado. Surge, e com o chamboco faz um bater seco, curto, suave mesmo. É o contraste com o ritmo acelerado do casal que os desperta, ele apercebe-se primeiro:
- Ysh, baby sorry lá, espera – abre o vidro – boa noite chefe.
- Boa noite, peço abrir a porta e sair por favor.
- … Hum… chefe… tem de ser… agora?
- Sim, agora. – ele olha para dama, para si próprio
- … Abrir a porta mesmo?
- Sim.
- … Hum… chefe… ok, tá nice. – ela passa para o banco, vestem-se, ele abre a porta
- Espera aqui, eu vou resolver. Chefe… - conversam os dois na rua, ela está nervosa, veste-se à pressa, penteia os cabelos ensopados de suor, senta-se e apanha a bolsa, procura não sabe o quê, os documentos? Lá fora a conversa continua, ela não consegue ouvir nada, ele volta:
- Alô, porque estás vestida?
- Como assim? Então… - ele apanha a sua pasta
- Vou pagar alguma coisa.
- Aceitam? Boa, nice e bazamos, tou pedir…
- Nada, vou pagar, chefe pede para estacionar mais lá e eles ficam connosco um bocado, é mais seguro.
- Como assim? Eles ficam? Mas…
- Compro uma hora, o que achas? Assim estamos à vontade.
- Mas, baby, eu… - ele sai lá para fora, paga, regressa e sorri:
- Interrompeu mesmo no momento, consegues concentrar-te de novo?
- Bom… ya, ok! – ela vai deitando uns olhares pela janela, eles estão lá, são quatro, sentados – ysh, baby, mas são tantos…
- O que é, estão a olhar?
- Sim, um deles.
- Deixa, não tira pedaço, anda cá! - passa o tempo, damo sai do carro
- Vais onde?
- Fica aí, vou apanhar contacto, temos mais uns minutos, podemos usar na próxima vez. Ei, chefe!