sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Tás aonde?!


Em Maputo grande percentagem dos telefonemas entre homens e mulheres começa assim: “tás aonde?!”
E a pergunta é inquisitiva, pede informação tão básica, soa a tal impulso, fala tão acusatória, é tão veloz - que é desarmante e parece que temos mesmo de responder.
A frase é lançada como um tiro logo que atendemos o celular, e vem assim, de surpresa. Não sei bem porquê, mas penso que é com a esperança de nos apanhar desprevenidas e deixarmos cair alguma informação… comprometedora. Porque é que estes homens pensam que nós, as mulheres, temos informações desse tipo, eu não sei. Mas desconfio…
E para evitar confusionar na nossa resposta não pode haver hesitação, a informação tem de ser clara, e principalmente verdadeira! Porque não raras vezes a seguir vem a frase: “se eu estou aqui, nesse sítio! Tás AONDE?”. E neste momento mesmo aquelas de nós que estamos a dizer a verdade - resultado de termos sido apanhadas de surpresa ou não - ainda duvidamos, olhamos em redor, como que para confirmar que estamos naquele sítio. E paramos o que estamos a fazer, interrompemos o papo, refreamos o passo, largamos as compras, espreitamos à janela, vamos à porta, mudamos a pasta de mão e prendemos o celular, em desequilíbrio, entre o ombro e o ouvido. Rodamos a cabeça à esquerda e à direita, e em sorriso, ou em urgência, ou com receio… procuramos o tal damo do telefonema. E invariavelmente, ele não está por perto… era jogo, golpe, manobra de diversão.
E é curioso que em geral não atacamos, estamos ocupadas com a defesa não é? Neste aspecto acho que devíamos estudar mais tácticas, ver mais jogos de futebol, talvez.
Mas parece mais uma luta que um jogo… Defendemo-nos como podemos, e é cansativo.
Da nossa resposta depende o desenrolar do papo. E às vezes nem têm mais nada para dizer, é mesmo só para saber onde estamos.
Ligou para saber onde eu estou?!
Não é por preocupação, ou para me visitar, para me fazer uma surpresa ou por pura partilha de quotidiano, não. É para saber.
Eu não sei porquê, mas desconfio.
E oiço as estórias dos maridos e dos namorados que põem um chip no celular das mulheres, para saber onde estão. E parece que mesmo assim ligam e disparam o mesmo tiro “estás aonde?!”, para confirmar.
E também de mulheres que aparecem de surpresa, que lêem as mensagens e verificam a lista de chamadas…
E dizem-me que os homens mentem mais mas as mulheres mentem melhor…
Mas para quê? O que conseguimos nós com tanto malabarismo de enganar e de descobrir. Não é cansativo? E é que n’um vale a pena!
Enquanto escrevo o celular toca, e em vez do habitual “alô!” eu disparo,
- Tás aonde?! – do outro lado há atrapalhação e a chamada é bastante curta. Parece que pelo menos desta vez, ganhei. Não ganhei a guerra, mas nas relações homem mulher que às vezes se assemelham a batalhas, ganhei uma...

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Águia em ruínas











Na cidade de Quelimane há uma trupe de actores. Actores 24 horas por dia, sem salário, sem peças, sem espectadores, mas com um teatro. Pelo menos o que resta dele.
E desconfio mesmo que estes são actores sem vocação, sem casting, sem sonho de estrelato ou de fortuna repentina. Sem aparecer na TV, sem sair foto no jornal.
Na cidade de Quelimane uma trupe de actores forçada habita um teatro em ruínas.
E o peso deve ser grande, porque os shows são diários, o espectador pode aparecer a qualquer momento e todas as acções que são feitas aqui, neste contexto, são teatro.
Eu apareci hoje. Está sol, estou em Quelimane em itinerância com a companhia de teatro Gungu, passamos à frente do teatro, e o Gilberto, na curiosidade que lhe é própria, abranda o jipe e salta para a fachada. Está tudo completamente fechado mas não desistimos à primeira, perguntamos por ali e parece que se dermos a volta por detrás se consegue entrar.
Claro, pela entrada dos actores! Passamos um café fechado, duas casas de chapa e uma machamba, subimos os degraus de cimento meio destruídos, e abrimos a pequena porta de madeira que vai dar ao palco, espreitamos.
A visão é poética. E triste.
Duas ou três famílias dividem entre si os exíguos camarins, para chegar a casa atravessam o palco, do qual só restam algumas tábuas, que se equilibram de forma precária sobre um sub-palco inundado de água – verde.
Este teatro é casa destas pessoas.
Os teatros são património cultural de um país.
Os teatros têm estórias dentro deles, e elas vivem dentro daquele espaço mesmo depois da última representação. Os actores que por ali passaram descansam ainda naqueles camarins, maquilham-se, riem, sentem os nervos, aclaram a voz. James Dean ainda nos olha “A Leste do paraíso”, como no dia da estreia.
Um teatro tem presenças.
Um teatro vazio é um espaço triste, a sensação de “fim de festa” depois de acabar a apresentação de um espectáculo é… solitária.
Um teatro em ruínas é… trágico.
Eu, na coragem própria dos inconscientes, avanço pelas tábuas, a minha trupe grita, mas eu faço apenas o que vejo fazer, sigo as pisadas do mais velho destas famílias que indica o caminho quase sem falar à mulungo.
Desço para a plateia e fico a olhar.
O cenário é chocante. E a cena… a cena é tão bela. Parece retirada de uma performance pós-moderna, daquelas tipo: “o teatro na vida de todos os dias”, “a dança no quotidiano”, “cenários urbanos”… mas estas pessoas vivem mesmo aqui. É impressionante e eu estou impressionada. É preciso fazer algo por estas pessoas.
E pelo teatro…
Eu visito teatros com a mesma devoção com que outras pessoas visitam igrejas ou mesquitas. Com fé.
E os teatros foram feitos para estar vivos! Bonitos, limpos, confortáveis e cheios, cheios de gente. Aplausos, risos e dores, tudo acontece num teatro.
Nos teatros estreei-me, descobri-me, apaixonei-me, fiz amor, perdi-me… E fui feliz e sofri com aquelas pessoas que me acompanhavam, com aquelas outras que inventava ali, naquele palco, durante aquele momento – efémero, mágico. O teatro é lugar de partilhas, onde confessamos o inconfessável, onde assistimos ao inaceitável, onde sonhamos o impossível…
E tudo está lá naquele teatro onde tudo aconteceu e em todos os teatros onde todas as paixões e ódios, tragédias e comédias aconteceram. Vive no veludo das cortinas, nos painéis das paredes, nas cordas que levam à teia, nos telões dos cenários, nas tábuas do palco, nos estofos dos assentos, nos tecidos das roupas que vestem os actores, em cada prego e farpa da madeira.
E tudo se sente e se ouve no fosso da orquestra, nas vozes dos actores, na magia acústica do espaço…
Mas lá, em Quelimane, está em ruínas.
O Cineteatro Águia está a cair. E como este muitos teatros por todas as províncias de Moçambique caem. O Kudeca, em Tete, vai ser demolido e no seu lugar vão fazer um hotel…
E os actores? Os actores, os muitos actores de Moçambique, é para representar aonde, afinal?

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Da posse II







(continuação)
Agora ainda estou mais intrigada… veio o guarda? Algum dos dois me engana… mas e se é uma emboscada? Apanharem-me aqui nas escadas ou lá em baixo… é fácil… e eu que faço? Já me imagino de cabeço baixa, “porque é que saí de casa, porque não sou sensata?”. Mas a sensatez não é a minha característica mais marcada, e cada um tem de perceber seus pontos fortes e usá-los!
Ganho coragem, amarro a capulana, e lá vou eu!
Bom, sentia-me melhor se levasse uma arma… mas eu não tenho armas… um spray! Pelo menos nos filmes funciona! Confiante nas elaborações da ficção, e armada com um desodorizante DOVE go fresh, um telemóvel e uma chave desço para a rua. Mas não desço fresca, vou receosa, confesso.
Troco algumas palavras com o guarda, que continua a dizer que está tudo bem. Acrescenta que as portas de trás do carro estavam abertas e o porta-luvas também – que parte disto é que lhe parece bem é para mim um mistério, talvez seja mestre da filosofia da partilha universal, ou talvez seja só porque o carro não é dele!
Sei que também não é meu, as coisas não são nossas, reforço a minha consciência do facto.
Vou até ao dito carro, as portas estão fechadas, e mesmo bem fechadas, porque do lado do condutor a fechadura foi tão forçada que a chave nem entra. Vou pelo lado do pendura, entro, a chave nem entra na ignição…
Saio e dirijo-me ao mano a quem devo um pedido de desculpas:
- Tem razão mano, entraram ali, chave nem roda agora…
- Eu disse, senhora estava a desconfiar! Eu que salvei, moços lá e eu fiquei só assim a olhar, só! Nem disse nada. Eles atrapalharam, foram embora. Se não fosse eu agora estavas a chorar aí.
- Ya… peço ficar de olho essa noite, amanhã conversamos.
- Ya, ok… Se eu apanhar tiro desses aí eu não sei… Eu nem devia ficar aqui com esse jack nem nada, talvez disfarçar eu não sei… esses podem voltar, se fazem isso assim, de dia, de madrugada podem vir me complicar que nós somos esses moços que impedem de fazer seus business.
- Te agradeço muito mano - tenho um boné no carro e entrego-lho para o disfarce da noite.
Agradeço de novo e ainda olho para trás, ele está com um boné do 10 de Junho - dia de Portugal, e ainda lhe vejo a expressão ofendida de eu ter desconfiado…
Na entrada do prédio o guarda está a jantar, de costas para a porta, eu vou dizer-lhe qualquer coisa sobre o carro, que ficou lá no mesmo sítio, que ele vigie, entre duas garfadas ele confirma que sim, claro.
Ao Jaimiro aqui, publicamente digo Sorry e thanks, mano!
As outros manos, peço deixar meu carro, porque a partilha universal até entendo, mas e pagar o carro, podemos partilhar?
Já agora, aos que levaram a máquina fotográfica - emprestada, claro - peço trazer que ando com câmara emprestada, preciso dela este mês.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Da posse




As coisas não são nossas, são-nos apenas emprestadas por um período limitado de tempo.
Todos o sabemos, não existe pertença, nem de pessoas, objectos, animais ou sentimentos. Nada é meu, é quando muito nosso, de todos.
Eu sei disto, tudo pode partir. Daqui a um minuto.
Quando comprei o meu carro brincava, estacionava-o e quando voltava dizia sempre: “o carro ainda está ali, o que é bom sinal.” Mas a brincadeira, como acontece sempre, tem um fundo de verdade, é como se ainda não acreditasse que o carro é meu.
Sei que basta um gesto, um desequilíbrio milimétrico nas chuvas, nos ventos, no interior da terra – para tudo mudar.
Mas hoje, por um momento, tive medo! E as filosofias ficaram de parte.
Ainda é muito cedo e eu estou em casa, é coisa rara, mas hoje decidi trabalhar em casa, e aqui está a prova de que o trabalho não compensa e o crime…
Alguém bate à porta, não é muito comum e por isso eu não abro. Pergunto, como me ensinou a fazer a minha mãe:
- Quem é? - ninguém responde. Pelo vidro martelado consigo ver que é um homem alto, de blusão de pele,
- Quem é? - depois de mais um tempo responde:
- É o guarda. - o guarda do prédio é baixo e já com uma certa idade, este rapaz é alto e jovem, entreabro a porta,
- Senhora vem lá ver que alguém entrou no teu carro! – o meu coração bate mais forte, o meu carro!! Mas depois desconfio – como a minha mãe me ensinou a fazer,
– Mas tu não és meu guarda! Meu guarda não está lá?
- Sim, mas eu que vi: dois moços, um claro e outro muito escuro estacionaram assim, colados teu carro e entraram, eu que salvei, iam roubar teu carro senhora, agora mesmo iam! – esta parte incomoda naquele lugar onde a filosofia da partilha não chega, levar meu carro??
A mim apetece-me sair a correr e ir ver se ainda está lá – mas assim para além da filosofia também se vão os conselhos da mãe, e ainda o carro, é muita coisa para perder numa noite mesmo para quem questiona isto da posse…
- Mas, lá em baixo tem muitos carros, qual é que é meu? – preciso de falar mais com o tipo para estudar se é mesmo verdade… tenho vontade de sair mas as escadas são escuras e já me imagino a ser apanhada numa ratoeira, e oiço mesmo as palavras da minha mãe: “eu não dizia?”; e as minhas amigas: “nem eu que sou moçambicana não faço isso!”; e os meus amigos: “tens de ter um homem contigo, sozinha vês o que acontece?”; e todos lá na tuga: “pois, África é muito perigoso” – ele não sabe ao certo mas responde,
- Eu que confirmei com esse moço Giro, “esse carro não é daquela branco daqui?” É teu carro! Um… cinzento.
- Chama lá meu guarda – ele sai, chateado. Eu estou certa de que é mentira e penso que ainda bem que não segui o primeiro impulso, as coisas que podiam acontecer!
Mas o rapaz volta, com o meu guarda,
- Senhor guarda, com meu carro está tudo bem?
- Sim senhora, tudo bem. – o rapaz não cabe em si,
- Mas, se tem as portas abertas?! Dois moços estavam lá dentro! Eu é que vi.
- Senhor guarda peço ir ver.
- Ok, você que sabes!! – e, na verdade ainda duvidando, lanço um vago
- Obrigada moço! – ele já se afasta num
- Aaaaaaaaaaaaaahhhhhh senhora! - eu fecho a porta. Meu coração continua de batida agitada e não estou satisfeita com a solução…
(continua)

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Das despedidas




Saio de casa, passo em frente ao CFM. Passo as paragens cheias de pessoas. As mamãs carregadas de trouxas na cabeça, os bebés adormecidos nas costas, os pais arrastam as crianças mais pequenas por um braço. Aqui as pessoas apanham os machibombos para Lllllllllllllllllllllllllllllllllllááááááááááááááááááaaaaaaaaaaaaaaaaa! Para longe.
E não vejo cenas de despedidas.
Aquelas cenas, sabem do que falo, o cinema está cheio delas, e as estações rodoviárias, de metro, de comboio, lá de Portugal também. Daqui as pessoas partem. E é verdade que também chegam mas – talvez fruto da minha origem – quando olho estes espaços vem-me sempre a melancolia triste da saudade. O sentimento precoce das partidas.
Sinto que aqui, em África, se vive com mais intensidade o agora. E por variadas razões.
E as despedidas são fugazes gestos quotidianos. Bênção de boa viagem talvez, envio de saudações para os que estão lá também, mas só.
Têm razão manos, porque as despedidas, são armadilhas… tal como nas visitas relâmpago e nas viagens os encontros têm a falsa magia do efémero nas despedidas também o sentimento é falso. Ali tudo o que aconteceu parece bem, e fica doce o passado, mesmo que muito recente, e fica mágico o futuro, mesmo que impossível. E o momento, esse sim, real, quase não o sentimos… a melancolia, a tristeza, ou mesmo a alegria que possa existir não são do minuto em que nos separamos. Isso não existe, ali, naquele café, naquele hotel - o que vive ali é o que não devia ter direito para viver - o passado e o futuro. E a mim as despedidas apanham-me sempre… engano-me.
Sinto-o no abraço especial dos amigos de infância, no passo atrás de uma separação, no último segundo antes de assinar um divórcio, no olhar lacrimejante da mãe, no “até logo” vago dos amantes de uma noite, no afago triste no focinho de um animal que já não sentimos nosso… nessa melancolia estranha que vem só da insegurança do tempo - quando? E se não nos encontramos nunca mais?
Há qualquer coisa na despedida que nos faz querer mais coisas da pessoa e daquele sítio para onde vai. Coisas que não queremos de facto! E alongamo-nos em lamentos, interiores ou verbalizados: que não fizemos isto ou aquilo, que passou tão depressa… E muitos de nós, dos que não resistimos ao silêncio e tememos a dor, seguimos em promessas: mas vemo-nos outra vez, logo que chegar ligo, eu volto, e para a próxima fazemos isto e mostro-te aquilo… E tantas vezes as promessas são falsas, mas acreditamos, faz-nos sentir melhor…
E se todas estas questões ocupam a nossa mente nem sequer estamos bem aqui, eu já não sinto a pessoa cá e ela também já está meio lá… a despedida dói, porquê? Aquele momento de fechar a porta, adiamos - os olhos na fresta. No desligar do telefone brincamos com os namorados: “desliga…”, “agora! Desliga tu”, “ya, vou desligar, ta a acabar crédito”, “oh! Sim, desliga!”, “afinal?”, “na wenna? Desliga lá”, e em tom cada vez mais meloso “mas não desligaste…”
E mesmo nos aeroportos, quando passaram a segurança, o corredor, quando se fechou a porta do avião, nós espreitamos, em bicos dos pés. Eles, os que partem, deslocam o pescoço em ângulos impossíveis, para quê?
O momento da despedida só é diferente dos outros psicologicamente. Só custa porque sabemos, em audaz certeza, que vamos deixar de ver aquela pessoa.
Mas não é assim, percebem? E das duas uma, ou passamos a sentir assim todos os momentos, porque a verdade é que não se sabe quando estamos a ver pela última vez uma coisa… ou então tratamos as despedidas como momentos assim, normais: Tata!