sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Papai governa


Sonhei que África era abençoada. Não só pelo clima, pela beleza, pela fertilidade, pelos espíritos, djin e xikwembo...
Conheço um bocadinho de África: os grandes desertos; as águas doces, turquesa; os países de gente esquecida pelo petróleo; os lugares das cegueiras de diamantes; os da riqueza exuberante dos barões e… os da pobreza absoluta. Selva e beleza.
Sinto uma comichão no peito. Pequena, suave, quase nada, toco ao de leve com os dedos, olho e vejo uma formiga minúscula, está quase colada à minha pele, toco-lhe de novo para a tirar, apenas para a mudar de lugar, mas a minha força é difícil de medir com um ser tão pequeno, esmago-a. Fico a olhar para o meu dedo e balbucio um “Om Shanti”, não era minha intenção…
Dia 2 de Setembro. “O paish vai ardher” já não é premonição, é descrição. Amanhece e eu continuo com a sensação morna de um feriado de verão. Mas um feriado estranho. Há poucas pessoas na rua, caminham lentamente, os carros passam solitários de hora a hora. A baía está serena, oiço chorar o bebé do prédio vizinho e ao longe – tiros! Ainda. Ainda não acabou. Dizem-me que nos bairros mais periféricos se sente a tensão de quem prepara o plano e espera a oportunidade.
Sonhei que África era abençoada por mais do que lendas, mistérios, calores e desejos.
Diz quem viveu os tempos que a fila de pão hoje lembra as filas do abastecimento, “longa, esfomeante e cansativa”.
Recebo nova sms “Defunto foi transportado de txova por falta de carros disponíveis no hospital, passou na avenida Julius Nyerery. Places de food encerram after sunset. Ruas pertencem aos peões. Falta de gasolina, pão, água. É este o update às 20h30”.
No noticiário em Portugal declaram que estão de volta os tiroteios às ruas de maputo. A família telefona preocupada. Na minha rua nada se passa, tudo calmo. Aquela calma estranha que parece segurar em suspenso as energias, calma que acama os ânimos. Calma que antecede as agitações. Há mais de um ano que vivo sozinha em Moçambique, sempre me senti bem mas agora… não me sinto muito segura. A casa nova é grande, vazia… hoje sinto-me estrangeira.
O vizinho na varanda ao meu lado escreve o computador Mac e fala ao celular em italiano, tem um ar nervoso.
O vento forte faz bater as janelas, os cães ladram, mas eles não sabem o que se passa. Pois não?
Sonhei que África era mais generosa, como são a mãe natureza que ainda nos governa os dias.
Sonhei que África era abençoada por mais do que generosidade das paisagens, dos animais, das tribos… mais que músicas, frutas, mariscos, praias…
Sonhei com o dia em que África é abençoada por governos também generosos, que não precisam de ler no discurso escrito a palavra “condolências”.
Um governo que viva com o povo e não com medo deles, e não em relação paternalista de castigo, ou de dono para seu cão, nos reforços positivos para ensinar a obedecer. Um governo que seja pai, porque assim na verdade eu cá sinto-me órfã!

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