quarta-feira, 26 de maio de 2010

Antes do juízo II


Pensas que sabes muito sobre África? Sobre a Europa, sobre as Américas ou sobre a Ásia de Bollywood, onde vivem os primos afastados e as sobrinhas bonitas? Pensas que sabes muito sobre a tua terra, a tua cultura, as tuas raízes ou o que são os interesses da tua raça, do teu grupo social, da tua família, dos teus amigos? Não estejas certo. A vida é mutante. Tu e eu também.
Um destes fins-de-semana fui convidada a uma celebração. Um aniversário de uma criança. Eu fui.
Fui segura, armada com o meu pré-juízo. Não esperava grande desafio, nem grande teste aos meus talentos de comunicação: vivo em África há algum tempo - em Moçambique há mais de dois anos; a festa era no Fomento - vivi na Liberdade; a família é a da minha empregada - que conheço há um ano, de quem conheço irmãos, mãe, filhos, morada, credo e condição económica…
Surpresa…
Contava eu que ia a uma festa. Cheguei tarde, e logo aqui fui desafiando as questões do respeito. Tudo é relativo mas é comum a muitas culturas, localizações geográficas, contextos sociais e religiosos - é quase seguro que chegar a horas não ofende ninguém. Mas mesmo assim eu resolvi desafiar os meus talentos e… chegar atrasada.
Chego, e a cerimónia que devia começar há cinco horas atrás e estar agora no momento descontraído dos comes e bebes, está ainda no início, na celebração religiosa.
Eu encolho-me e repito os “Amén”, meio envergonhada, meio afirmativa, em ataque de fé inesperada, em afirmação involuntária dos antecedentes da formação religiosa. Eu não presto culto ao deus cristão mas aqui sai-me da boca… porquê?
Eu não sabia o que fazer, eu não entendia metade do que se dizia, do que se fazia, do que se esperava de mim, interpretava cada frase como lição para minha própria falha e cada olhar cansado como censura, descodificava os gestos como desconfiança, e até o meu lugar à mesa parecia desafiar as capulanas nas esteiras onde até os mais velhos estavam sentados.
Eu sentada, e a mente a viajar em falhas imaginárias e medos reais. Não sabia o que fazer. Durante duas horas não soube, falhei o cumprimento à mãe e pai da casa, a homenagem à criança e a atenção à anfitriã. Bebi Fanta que nunca bebo e nem toquei na cacana que foi feita para mim, não elogiei as músicas cantadas, não aprendi com o que me intrigou nem mostrei que sei, que sinto, que gosto, que posso dar. Não dei nem recebi. Não me diverti. E logo que pude fugi.
Quando não me aproximo sou eu que fujo, decido ficar no meu ovo de conforto, defendo-me.
O que podia fazer? Não sei, podia ser: “quero cumprimentar mãe da casa, onde está?”; “Desculpe ter chegado tarde mas e agora… como se faz aqui em casa?”
Podia dizer! Pensemos juntos, quem iria eu ofender? Ninguém. Então porquê? Entrei como mulungo, estrangeira, mas podia ter saído de outro modo, não foi o que escolhi… mas a pergunta então é, porque fui?
Que fui fazer ao ocupar a cadeira de destaque na cerimónia da família? Quando me sento entre uma família africana não sou eu que me sento, é um mulungo que toma lugar, que toma palavra, que respeita ou desrespeita os cultos. Como um africano numa comunidade chinesa é “o” africano e não um individuo qualquer, único, com sua personalidade, suas manias, gostos e defeitos, não, ele é África, porque é tudo o que conhecem sobre ela.
A vida é cheia de negociações e re-negociações, de comunicação, de hierarquia, de ritos, de hábitos, de códigos, de regras, e a não ser que escolhamos a vida na montanha temos de descodificar. E a toda a hora. Sempre.
Viver é descodificar, mais nada.
Mas é bom quando a tradução é simultânea! Claro que depende dos intervenientes, de um tempo, de um espaço, de uma situação específica. E aqui o delay foi inevitável…
Mas agora, em casa, sentada nas almofadas da sala em estilo oriental, aqui descobri.
Porque agi assim?
Por medo. Por medo do ridículo. Eu escondi-me, nada fiz por cobardia, por vergonha, por defesa. Preferi correr o risco de ser mal-educada que ser ridícula.
Pela experiência que vivi até hoje tenho poucas certezas e as que tenho testo-as todos os dias. Esta continua actual: todos somos ignorantes.

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