sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Hei-de vir!


- Amanhã tenho cena às nove horas, posso levar teu carro?
- Ya, podes, na boa, mas às 12 tás aqui, ok? Tenho djob às 12 horas.
- Ya, tá nice.
- Às 12. Não “aquela hora das 12”, mesmo 12!. É djob novo hã, não quero atrasar eu, ok?
- Na boa, hei-de vir 12 horas.
- Tou pedir a sério ok? É importante para mim, boss novo, sabes como é.
- Ya, sei não tem problema, hei-de estar.
- Mas tu não vais aquela cena que estão teus bradas? Vê lá, vais querer ficar no papo, vais atrasar, ysh melhor não levares, né?
- Nada, eu venho. Na boa, não vou falhar.
São 11h45 e eu faço a chamada, o telefone toca, toca, toca, mas ninguém atende. Hum… em Moçambique quando não atendem o celular tudo aquilo que estava combinado, seja contrato ou casamento, fica em questão. Não atendeu… ysh… aha wenna! Ok, plano B, envio mensagem. Passados 10 minutos ele liga.
- Alô.
- Desce, tou aqui.
- Ok.
Calço os sapatos a correr, fecho a porta, a grade, os cadeados, desço. Não está ninguém cá em baixo.
Eu espero.
Espero.
Espero.
Espero.
Espero.
Por 20 minutos eu espero.
Porquê?
Quando combinamos alguma coisa todos nós podemos escolher não falhar, se temos dúvidas, impossibilidades, compromissos, falta de vontade, desinteresse – qualquer razão para não cumprir o combinado podemos avisar. Ou não?
Mas moçambicano não gosta de dizer que não, de contrariar, de mostrar que não sabe, não quer, não gosta, não tem certeza. Moçambicano gosta de dizer que sim, afirmativamente ele aceita. Ainda a pergunta vai no meio e ele já acena com a cabeça “Sim, sim!”, concorda, muitas vezes até sugerindo possibilidades, definindo pormenores. Mas depois, invariavelmente, atrasa, falha, falta, esquece, engana, desleixa, gazeta, desprograma, mente…
E se insistes no combinado, se alertas mesmo para que se há problema com aquela data, aquele horário, determinado local ou actividade podemos mudar é rápido e afirmativo nas confirmações e pode até zangar com a tua desconfiança sobre o seu cumprimento de horários.
Mas depois… mesmo que esteja a sair da casa em Belo Horizonte e fale com quem o espera numa rua da baixa ele diz: “estou aqui”.
Em Moçambique “aqui” é especificidade de lugar indeterminado, mas distante. E a expressão “vir” é verbo para sempre incompleto.
A própria expressão muito comum “estou a vir” é contradição em si própria, como se pode “estar a vir”? Só podemos estar a ir… acção ainda não concluída!
Mas no fundo, como a maioria das expressões usadas em Moçambique, é expressiva esta forma, bem mais que o português comum a que eu estava habituada.
O estrangeiro que conheça o português que se fala em Portugal e chegue a Moçambique pode por algum tempo acreditar que aqui não se fala “português correcto”, mas desenganem-se, o português é correctíssimo, e o que parece um erro é apenas expressividade linguística de um pensamento de outro modo oculto. Na expressão “hei-de vir” por exemplo, está bem presente a ideia que está por detrás - invariavelmente o que a usa pensa para si: “posso atrasar mas sempre hei-de vir”.
Moçambicano não chega, moçambicano atrasa.
Mas aqui não falo de horas, de relógios, de questões culturais, de questões de produção nacional ou organização governamental, falo de respeito.
Entre duas pessoas comunicar é conseguir pôr-me na pele do outro, sair de mim por um momento e no outro sentir a hesitação, a compreensão, a dúvida, a incredulidade... sentir o que ele sente.
Atrasar é dispor do tempo do outro, e isso não é um direito meu.
Atrasar é dizer que o tempo do que espera por mim é menos valioso que o meu.

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