segunda-feira, 31 de maio de 2010
Da vergonha
A vergonha é para mim um sentimento… misterioso.
Não falo da vergonha encabulada da infância, quando somos apanhados em falta. Ou do nervoso que faz o sangue subir com mais intensidade à face e nos aquece as bochechas.
Falo da vergonha como um sentimento forte, ácido, contundente por vezes, que nos faz ter dificuldade em levantar a cabeça, em olhar os outros nos olhos; que nos impede de falar livremente das nossas próprias acções, sem medo de censura ou desaprovação.
Porque acho estranho, mesmo bizarro, que eu possa sentir vergonha de algo que fiz. Se fiz é normal, mesmo que agora fizesse diferente, mesmo que tenha outra opinião e gostasse de mudar algo, na altura foi assim, nada a fazer. E na verdade o que posso mudar agora, a minha acção é essa, não é ter vergonha do passado mas fazer diferente.
A vergonha, com excepção dada à naïfte charmosa da tenra idade, é sentimento inútil. Não serve para nada. É sentimento cobarde, que nos impede de agir no agora.
Mas claro que eu já senti vergonha, sim todos nós sentimos.
Mas a vergonha faz-nos esconder, impede-nos de enfrentar, leva-nos a mentir.
Vejamos um exemplo concreto, nas situações de violência doméstica as vítimas começam por desculpar os agressores. São comuns as contextualizações elaboradas e emotivas das acções frias e secas que sofrem. E justificamos, elaboramos, enganamo-nos, protegemos quem não merece protecção.
Namorávamos há bastante tempo e eu era muito nova não pude fazer nada e… Ele era carinhoso mas um dia ficou muito nervoso com uma situação no emprego e… Casámos muito cedo e… Ele nunca tinha tido nenhuma atitude de violência mas… Ele era muito calmo mas quando bebia ficava completamente diferente e… Ele pensava que eu tinha outra pessoa e descontrolou-se… Ele era muito inseguro e tinha necessidade de mostrar o seu poder em frente às outras pessoas e… Ele bebia e… Ele acompanhava-me até à escola e ficava à minha espera no portão, e não podia ver-me a falar com colegas senão...
E… ele deu-me uma chapada; perseguiu-me; bateu-me com o cinto; afastou-me da família; apertou-me o pescoço; ameaçou-me com uma faca; atirou-me ao chão; rapou-me o cabelo; torceu-me o braço; atirou-me pelas escadas; fez chantagem comigo; insultou-me; roubou-me o meu filho; arrombou uma porta na minha cara; deu-me pontapés; bateu-me quando estava grávida; violou-me; proibiu-me de trabalhar; ridicularizou-me frente a estranhos; fechou-me em casa; proibiu-me de falar com os amigos; bateu com a minha cabeça na parede; retirou-me o dinheiro; queimou-me com um cigarro; pisou-me; bateu-me enquanto eu segurava o meu filho; caluniou-me junto a meus vizinhos; destruiu as minhas coisas; humilhou-me…
Raramente as acusações são feitas assim, crua e secamente. Na maioria das vezes as atenuantes, somos nós, as vítimas, que as apresentamos mas invariavelmente a frase acaba com “bateu-me”. Sim, ele bateu-me. Mas sou eu, a vítima, que construo a frase com “mas” e “se” e justificações para o acto dele.
Porquê?
Porque tenho vergonha. EU tenho vergonha de ter sido agredida.
Faz sentido isso?
Mas sim, claro. Eu tenho vergonha porque eu o escolhi, porque eu não tenho coragem de denunciar, de ir embora, de fazer queixa à polícia, de acabar com o abuso. E é aqui que começa o poder do agressor, o poder que eu, vítima, lhe dou, de manipular o que eu sinto por dentro, o que eu sinto em relação a mim. Muitas pessoas são abusadas e não denunciam porque elas têm vergonha. Sim, também têm pena muitas vezes do amor que não resultou, medo de não ter mais hipóteses na vida sozinha, têm falta de opções de sobrevivência, e nenhuma independência económica, falta de compreensão por parte dos familiares… mas muitas vezes somos nós, as vítimas, que nos colocamos nessas situações, somos nós que nos escondemos, que não contamos, que nos afastamos das pessoas que nos são próximas, que desculpamos e justificamos as acções injustificáveis. Porque temos vergonha.
E muitas vezes ele também tem, ele, depois de exposto e denunciado tem vergonha. Mas tem vergonha de que se saiba? Devia ter vergonha sim, mas vergonha de fazer.
Por isso eu agora conto. Digo tudo, a toda a gente, exponho o que dizem ser a nossa intimidade e que se deve preservar, não importa! Nada é íntimo, deve-se partilhar. E embora em muitas facetas da intimidade esta afirmação possa ser questionável nesta não é: se és abusada conta, diz, expõe. Não guardes. Não tenhas vergonha.
quarta-feira, 26 de maio de 2010
Antes do juízo II
Pensas que sabes muito sobre África? Sobre a Europa, sobre as Américas ou sobre a Ásia de Bollywood, onde vivem os primos afastados e as sobrinhas bonitas? Pensas que sabes muito sobre a tua terra, a tua cultura, as tuas raízes ou o que são os interesses da tua raça, do teu grupo social, da tua família, dos teus amigos? Não estejas certo. A vida é mutante. Tu e eu também.
Um destes fins-de-semana fui convidada a uma celebração. Um aniversário de uma criança. Eu fui.
Fui segura, armada com o meu pré-juízo. Não esperava grande desafio, nem grande teste aos meus talentos de comunicação: vivo em África há algum tempo - em Moçambique há mais de dois anos; a festa era no Fomento - vivi na Liberdade; a família é a da minha empregada - que conheço há um ano, de quem conheço irmãos, mãe, filhos, morada, credo e condição económica…
Surpresa…
Contava eu que ia a uma festa. Cheguei tarde, e logo aqui fui desafiando as questões do respeito. Tudo é relativo mas é comum a muitas culturas, localizações geográficas, contextos sociais e religiosos - é quase seguro que chegar a horas não ofende ninguém. Mas mesmo assim eu resolvi desafiar os meus talentos e… chegar atrasada.
Chego, e a cerimónia que devia começar há cinco horas atrás e estar agora no momento descontraído dos comes e bebes, está ainda no início, na celebração religiosa.
Eu encolho-me e repito os “Amén”, meio envergonhada, meio afirmativa, em ataque de fé inesperada, em afirmação involuntária dos antecedentes da formação religiosa. Eu não presto culto ao deus cristão mas aqui sai-me da boca… porquê?
Eu não sabia o que fazer, eu não entendia metade do que se dizia, do que se fazia, do que se esperava de mim, interpretava cada frase como lição para minha própria falha e cada olhar cansado como censura, descodificava os gestos como desconfiança, e até o meu lugar à mesa parecia desafiar as capulanas nas esteiras onde até os mais velhos estavam sentados.
Eu sentada, e a mente a viajar em falhas imaginárias e medos reais. Não sabia o que fazer. Durante duas horas não soube, falhei o cumprimento à mãe e pai da casa, a homenagem à criança e a atenção à anfitriã. Bebi Fanta que nunca bebo e nem toquei na cacana que foi feita para mim, não elogiei as músicas cantadas, não aprendi com o que me intrigou nem mostrei que sei, que sinto, que gosto, que posso dar. Não dei nem recebi. Não me diverti. E logo que pude fugi.
Quando não me aproximo sou eu que fujo, decido ficar no meu ovo de conforto, defendo-me.
O que podia fazer? Não sei, podia ser: “quero cumprimentar mãe da casa, onde está?”; “Desculpe ter chegado tarde mas e agora… como se faz aqui em casa?”
Podia dizer! Pensemos juntos, quem iria eu ofender? Ninguém. Então porquê? Entrei como mulungo, estrangeira, mas podia ter saído de outro modo, não foi o que escolhi… mas a pergunta então é, porque fui?
Que fui fazer ao ocupar a cadeira de destaque na cerimónia da família? Quando me sento entre uma família africana não sou eu que me sento, é um mulungo que toma lugar, que toma palavra, que respeita ou desrespeita os cultos. Como um africano numa comunidade chinesa é “o” africano e não um individuo qualquer, único, com sua personalidade, suas manias, gostos e defeitos, não, ele é África, porque é tudo o que conhecem sobre ela.
A vida é cheia de negociações e re-negociações, de comunicação, de hierarquia, de ritos, de hábitos, de códigos, de regras, e a não ser que escolhamos a vida na montanha temos de descodificar. E a toda a hora. Sempre.
Viver é descodificar, mais nada.
Mas é bom quando a tradução é simultânea! Claro que depende dos intervenientes, de um tempo, de um espaço, de uma situação específica. E aqui o delay foi inevitável…
Mas agora, em casa, sentada nas almofadas da sala em estilo oriental, aqui descobri.
Porque agi assim?
Por medo. Por medo do ridículo. Eu escondi-me, nada fiz por cobardia, por vergonha, por defesa. Preferi correr o risco de ser mal-educada que ser ridícula.
Pela experiência que vivi até hoje tenho poucas certezas e as que tenho testo-as todos os dias. Esta continua actual: todos somos ignorantes.
sexta-feira, 14 de maio de 2010
Antes do juízo
Não, não falo do juízo final, aquele que se crê em algumas religiões que irá organizar no nosso currículo as faltas e os pontos positivos e decidir da avaliação.
Não falo disso. Falo do pré. O pré-juízo.
Não sei bem o que é ou de onde vem, mas sinto que acontece. Todos nós, nalgum momento antes de pensar – dizemos; antes de saber – afirmamos; antes de escutar - julgamos.
Porque fala a aparência tanto?
Logo que me parece já digo que é. E mesmo sem me aperceber disparo coisas habituais como constantes e as constantes como certezas. E surgem no discurso sem pensar, bem escondidas nas bolsas vazias dos solilóquios a dois – nos monólogos disfarçados de diálogos.
Identificas-te? Pois é, mas não devia ser. Todos sabemos o quanto é limitadora e mesmo negativa esta atitude, mas tantas vezes escorregamos neles… nos rótulos. E afirmamos alegremente que “eles” fazem assim.
Mas a minha questão está aqui, quem são “eles” e porque me ponho eu de fora de um grupo? Como limito esse grupo?
Limito assim, com um pré-juízo. E “eles” podem ser os brancos, os negros, os monhés, os chinas, os muçulmanos, nigerianos, assimilados, mulatos, canecos, bouers…
Eles são, são “assim”, são “assado”. Eles são. Eu sei.
Porquê?
É difícil precisar, mas em geral argumentamos que é verdade que vem de longe, e que “toda a gente sabe”. Ora se conceitos como verdade e longe são difíceis de precisar o terceiro faz de novo aparecer os fantasmas a abater, porque pensa comigo: quem é “toda a gente”?
Desde que viajo que esta ideia me assombra - as pessoas quando viajam observam em perfeito deslumbre o que ignoram em casa.
E eu tenho medo.
Por não querer agir assim e pela hipótese de ser condição à qual não posso – leia-se aqui “não consigo” - fugir.
Fora de casa, se sou migrante, não só as características de outros povos são para mim mais interessantes mas também as da minha própria cultura tomam diferente dimensão. No estrangeiro o moçambicano aprende as línguas que nunca falou em casa ou toca tambor africano que nunca tinha experimentado. No estrangeiro eu guardo um xaile tradicional português e comovo-me com um Fado que nunca ouvi em Portugal.
Viajamos. Estamos no estrangeiro. E exercitamos em viagem uma tolerância e um interesse pelo que é diferente de mim que são intolerância e recusa se o experimento na minha casa, no meu prédio, no meu bairro. Não o aceito, critico-o mesmo, se essa diferença se expressa num determinado menu, numa prática religiosa, numa maneira de vestir, de decorar o carro ou perfumar o corpo. Se acontece no que acredito que é a minha terra, o meu território, o que é meu de direito não o tolero. Mas llllllllaaaaaaaaaaaaaaaaaá, naqueles contextos longínquos e preenchidos de exotismo o incenso é mais perfumado e o caril mais doce, o muezin mais afinado e as línguas mais… misteriosas.
Os ovos comprados na África do Sul são melhores que os que compro deste lado da fronteira, mesmo que os traga de apenas dez quilómetros atrás. As roupas que compro a dez Randes na baixa de Joanesburgo são melhores que as que oferecem aqui os nigerianos.
Porquê? Porque vêm do estrangeiro, destino que é bom quando vamos lá para fora, mas muitas vezes mau quando o recebemos cá dentro.
O que experimento em cada dia agita-me as certezas mas penso que seria mais fácil. Seria mais fácil se todos nos lembrássemos que todos somos. Estrangeiros.
sexta-feira, 7 de maio de 2010
Receber as sortes
- Senhora, meu filho teve um filho de fora. Sabe que significa isso?
- Fora?... do casamento?
- Sim. Então, esse filho, menina desse filho já deu bebé. Então hoje estiveram lá na minha casa, fui na esquadra senhora, estou a regressar da esquadra. Porque pais de menina vieram-lhe entregar aqui na minha casa, que eu sou avó e que culpa de encher barriga é meu filho que está na África de sul. Então, que eu tenho de cuidar essa bebé e que por culpa de meu filho menina deles não foi na escola, porque encheu barriga então que agora eu que tenho de cuidar porque para bebé eu nem dei nada para ajudar menina. Mas eu dei senhora, eu dei bacia e sabão e dei capulana. Senhora eles me levaram na esquadra porque eu tenho de dar mais, mas eu não tenho então eu disse chefe de lá da esquadra que eu só posso ir pedir senhora. Por isso estou aqui.
- Onde está bebé?
- Está lá na minha casa senhora, ficaram lá a viver, mas na minha casa tem seis, eu nem dinheiro de farinha não tenho.
- Hum…
- Senhora, posso ir levar bebé para ver se senhora gosta?
- Sim, pode trazer.
- Levar?
- Trazer.
- Senhora?
- Sim, levar, ok.
- Senhora vai aprender a lhe nanecar nas costas com capulana, e tudo e tudo. E nós com menina mãe de bebé decidimos que bebé vai se chamar Joaninha, estava para chamar de Danilza mas aqui em Moçambique sabe que podemos dar dois nome, nome tradicional e nome de baptismo. Então nós decidimos nome de baptismo vai ser de senhora, vai ser xará.
- Xará?
- Não sabe que é xará?
- Não sei.
- Senhora xará é nome de espírito para a bebé. Entendeu?
- … Não.
- Hehehe, senhora não sabe de nossas coisas, nesses livros aí que lê não aparece essas coisas?
- Não.
- Então, meu filho mais velho, Calado…
- Calado?
- Sim. É… como é que é?... é Calaudio.
- Cláudio?
- Isso. Então, esse nome é nome de antepassado, meu avô é desse nome aí de Calado. Nós lhe demos esse nome, eu bem lhe conheço meu avô, ele não era pessoa de problemas, meu filho também não há-de ser. Assim recebe antepassado lá em casa, mesmo meu filho aqui sentado, é meu avô esse aí. Está a ver, né?
- Sim, estou a ver.
- Então bebé pode ser tua xará? Assim receber suas sortes no nome?
- Pode… mas não é melhor ser alguém da sua família, assim madrinhas é bom ser da família porque…
- Senhora, nós queremos senhora para xará, mesmo todas essas viagens e coisas de livros e assim bebé há-de receber pelos nomes. Seu nomes. Vai ser feliz aquela ali. Mas senhora tem de permitir, permite?
- Sim…
Sento-me à beira do Índico. Espero.
Sim, por muito tempo espero. Espero as sortes.
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