quarta-feira, 1 de junho de 2011

Mestre índia II


Não é um choque para quem vive em África mas os meus dias começam cedo. No caminho para o kalari – esta palavra significa na sua origem “campo de batalha”, mas aqui é usada para designar a escola, o espaço onde aprendo - passo pelo templo a Ganesh:
- When you see a temple, you worship!
Eu assim faço. Entro no templo devagar, uma mulher que faz grinaldas de flores aproxima-se de mim:
- Where from?
- Moçambique. I mean… Portugal. - eu nunca sei bem de onde sou.
- Aaaaaaaah! Namaskaram!
Namaskaram é a saudação aqui, na língua Malayalam.
Aproximo-me do altar com a imagem do deus com cabeça de elefante, filho de Shiva e Parvati, o “abridor de portas”, o “destruidor de obstáculos”. Olho para as cores e os adornos, são belíssimas as estátuas dos deuses hindus.
- When you see a temple you worship!
I do. Sentado num palco um homem entoa mantras e queima madeira. Eu fico um pouco a observar, fecho os olhos. Chamam a este lugar “God’s own country”. Eu sinto nas narinas o cheiro doce do incenso. As mulheres à minha frente olham-me e murmuram alguma coisa que não entendo, canto apressadamente o mantra de Ganesh, “Om gum ganapatahye namaha”, preparo-me para sair, a mulher chama-me:
- Madama! Ba! (vem)
Chamam “madama” às estrangeiras, como eu! Ela aproxima-se de mim, molha o dedo numa pasta de pigmento vermelho e desenha uma pinta na minha testa, no espaço entre as minhas sobrancelhas. Sorri.
- Nani. – eu não sei bem o que fazer, mas agradeço.
Continuo o meu caminho para o kalari, atravesso a estrada impossível, os auto-ricksahaws (versão indiana do nosso txopela) são como animais cegos e assustados, qualquer que seja o obstáculo na estrada, seja automóvel, pedra ou peão, nada os faz alterar a velocidade ou mudar de direcção, avançam em linhas tangentes a tudo, e só param mesmo antes do embate.
Caminho lentamente, observando nas pessoas nos seus gestos ritualizados.
Índia é isso, código, em tudo o que acontece.
Hoje é a minha primeira aula. Subo as escadas para a casa do mestre de Kathakali – sim, a escola não é nada mais que uma varanda empoeirada onde o mestre se senta orgulhosamente numa cadeira de plástico.
- Where is your guru dhakshina?
Não faço ideia do que o mestre está a falar, olho à volta a tentar ter algum sinal, analiso cuidadosamente a expressão dele à procura de uma pista, nada. Num canto do kalari há um pequeno altar a Shiva, o deus destruidor, em frente ao altar está uma folha verde com uma espécie de fruto por cima:
- Yes, in your first day of learning you give gift to master. What is your gift?
Eu não faço ideia do que se trata, e dentro de mim apenas penso “vim aqui para aprender, não para ser testada”. A aula começa em 30 minutos, eu vou caminhar ali mesmo, na rua da casa do mestre.
As ruas são estreitas e esverdeadas pelas folhas de bananeira, as casas são bonitas e coloridas, as mulheres caminham de olhos baixos, cobertas de panos brilhantes, que esvoaçam. Os homens olham, as crianças gritam “madama, madama!”
Volto para trás, um menino caminha à minha frente com uma folha verde na mão, apanha do chão uma noz, olha para mim, não sorri. O arranjo que tem na mão é igual ao que vi no altar a Shiva no kalari, apanho do chão uma folha e uma flor, junto-lhe um fruto espinhoso e sigo para a aula.
- Master, here it is… my guru dhakshina?
Ele não sorri, está de pé no meio da varanda empoeirada vestido apenas com um pano que lhe faz de saia, apetece-me rir mas ele tem um ar solene. O miúdo que vi na rua avança à minha frente, de cabeça baixa oferece ao mestre o seu presente, o mestre recebe, o menino toca-lhe os pés, depois leva as mãos ao peito. O mestre está de olhos fechados e toca-lhe a cabeça, deposita cuidadosamente a oferta em frente a Shiva, o deus. Eu avanço meio a medo, repito o ritual… sim, aqui a aprendizagem é feita assim, de testes.
Eu passei o primeiro.

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