segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Ntsongwàna Maputo


São carregadas às costas, bem perto do corpo da mãe.
Andam em grupos fardados de verde e branco, a caminho da escola.
Caminham descalças, brincam com inventos de brinquedos tão reais como pneus, paus, arames…

Ao lado da minha porta vêem dar-me os bons dias:
- Titia, quando vais nos levar ao teatro?
- Mas pequenote, essa peça não é para crianças… - ele cresce na ponta dos pés
- Mas eu já tenho 10 anos!
- Um dia levo-te.
- Ah, estás a mafiar!

Aqui, em África as crianças são muito importantes, dizem-me. São a riqueza das famílias, as meninas significam um dote, os meninos trazem para os pais uma outra filha, a nora.
Nalgumas tradições as crianças são educadas pelos tios e não pelos pais, para fortalecer a unidade familiar, noutras logo que a menina atinge os cinco anos de idade é entregue à avó para tratar dela na velhice.

Muitas vezes neste continente se espantam por eu não ter filhos, e saem as perguntas,
- Mas senhora não pode? – dizem com tristeza;
- Não quer? – o desdém estampado no rosto.
Diz um provérbio africano “Se a mulher não pode ter filhos, deixa-a carregar nas costas uma pedra.”
E sinto cada vez mais o desperdício.
Os deuses castigam, bem sei, quando recusamos as coisas boas.

E tantas vezes deixamos a riqueza pelas ruas…
Maputo tem crianças nas ruas, a pedir, a mendigar.
Não sabemos todos, de cor, as esquinas, os degraus, os semáforos onde estão? Não conhecemos tão bem os rostos, a cor dos andrajos, a frase com que nos abordam, a maneira como dançam o som do chapa que passa, ou como se batem pela moeda que receberam. As de olhar triste e assustado, as de olhos sabidos e atrevidos. As que falam, as que só estendem a mão. As que correm para o carro. As que ficam a olhar mais de longe. As que tentam vender coisas, guardar o carro, carregar os sacos. As que podem roubar e matar. As que dormem enroladas numa camisola e as que se aninham juntas, em famílias improvisadas. As que jogam à bola com pedaços de papel. As que são respeitosas e as que são rudes.
Não sentimos todos a hesitação da esmola, o que dar, se dar. Moeda, comida, mais ou menos meticais para o que vive na rua. Todos sabemos, todos conhecemos. Então?

Saio do restaurante, a noite está fria. Uma criança descalça passa, veste apenas uma t-shirt, demasiado grande para o seu tamanho. Senta-se no chão, encolhe as pernas e estica a t-shirt até a tapar dos pés à cabeça, deita-se de lado, em posição fetal, e prepara-se para dormir enrolada no seu casulo de algodão, nas costas ainda se vê desenhada na cor gasta o logótipo da BP.

No caminho para o bairro da Liberdade passo o caminho-de-ferro, todos os dias aproximadamente dez crianças trabalham aqui, vendem rolos de papel higiénico das oito da manhã às dezoito horas. Estão de pé, carregadas com os enormes sacos,
- Cinco! Cinco! Cinco! Cinco! - gritam o seu produto para vender, perseguem os carros, recebem a moeda… todos os dias.

Na rotunda de entrada em Maputo, naquela água parada lavam as pernas algumas crianças, despem as calças e esfregam no alcatrão os pés. Um carro passa, salpica-os, de novo se baixam a apanhar a água, com cuidado, lavam as pernas.

Nenhuma criança devia viver assim.


publicado no jornal @verdade

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