terça-feira, 22 de setembro de 2009

Respirar




Viajei. Viajo sempre.
E ouvi-as nas lendas. Por todo o lado, entre as montanhas da china, nas encostas dos vampiros e nos vales das deusas gregas, nas estepes eslavas e nos lagos aqui de casa - os africanos.
Nos lugares onde o vento sopra livre e mesmo nos bairros mais fechados das cidades, podemos ouvi-los…
Soltam-se do bater das asas dos pássaros e caem devagar, feitos em perfumes, no rodopiar dos frangipanis, em caminho até ao chão.
Todos sabem, de Norte a Sul, de Este a Oeste.
Até lá, acima das estrelas, e mesmo lá no fundo, nas profundezas, é sabido: as respirações são…

E eu, eu não sigo pelos caminhos mais pisados, isso é bem claro, e até estou habituada a encontros invulgares, surpreendentes, estranhos, em situações vulgares, banais, quotidianas… mas…

Dizem que estão guardadas no ponto três dedos abaixo do nosso umbigo, e que temos um número limite, definido na altura do nosso nascimento.
Está no nosso corpo. Aqui, na zona mais sensível de nós.
Está armazenado e já existe, mesmo antes de nascermos.
Em cada um de nós, o número total de respirações a que temos direito já está definido. E podemos usá-las como quisermos, quando quisermos. Mas quando acabam, morremos.
Interrompo a ideia e deito-me para trás. Inspiro e expiro suavemente, alongo os tempos, e sinto como consigo duplicar, usando bem o ar no corpo, em cada uma das respirações. Saboreio o ar como saboreio a primeira colherada de uma sobremesa ou o primeiro gole de um bom vinho, ou aquela fatia de torrada, aquela do meio - sim, não deixo para o fim, é por aí que começo, devemos usar as coisas enquanto as temos - saboreio bem as respirações.
E sei que são minhas, aquele número.
A respiração é vital, podemos ficar alguns dias sem comer, menos sem beber e poucos minutos sem respirar.
Mas hoje, quando abri a torneira não saiu água…
E penso: será que existe algures armazenada a quantidade de água que cada um pode gastar?? Eu adoro banhos e agora, em África, envergonham-me os litros… vivo num dos bairros mais verdadeiros da cidade e é para mim impossível não pensar que fui eu… gastei-a.
É para todos nós coisa estranha esta de pensar que pode ser o depósito, o meu, o teu, o de cada um, que secou… mas houve um tempo em que era assim, a água e a comida, o sol e mesmo a chuva vinham mais ou menos do mérito da descoberta, da procura, do trabalho, e era proporcional, proporcional ao esforço que cada um fazia para satisfazer isto, que para alguns de nós, são as necessidades básicas…
Vivo em África, e aqui os tempos são outros…
Bom, a partir de agora - pelo menos por uma semana - meus duches serão mais curtos, o champô mais diluído, se também aí as quantidades que me estão destinadas são as que tenho no frasco?...



publicado no jornal@verdade

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